Heráclito 1



Heráclito viveu na segunda metade do século VI A.C. em Éfeso, na Jônia, Ásia Menor. Escreveu em prosa, em dialeto jônico. Descontente com os desmandos dos governantes, não se interessou em questões políticas, passando a viver solitário. Muitas vezes era chamado de “o obscuro”, mas parece que gostava de estar entre as crianças… "O Tempo é uma criança brincando; o poder real é o de um menino" (fragmento 32).




Alguns comentaristas (e foram vários, ao longo da história da filosofia, desde Platão e Aristóteles na antiguidade, até os contemporâneos, como Hegel, Niestzche, Heidegger) descrevem-no como aristocrata e elitista. De fato, afirmou (fragmento 104) que “a maioria dos homens é ignorante”, e ainda (fragmento 49) "Um para mim vale mil se for o melhor".


Por outro lado, ele muitas vezes afirma que todos os homens podem, sem iniciação, nem ritual, atingir a sabedoria. Bastaria buscar conhecer-se e manter-se atento e “acordado”. Mas, segundo Heráclito, a maioria vive como se estivesse dormindo, e, no sono, cada qual enclausurado em um mundo particular.


Dono de um saber luminoso, que se empenha em transmitir a todos, e confiante em que "comum é a todos o pensar" (fragmento 113), e que "a todos é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente" (fragmento 116), não hesita em atacar os que não enxergam o caminho próprio do homem, sua verdadeira vocação: "Há o que os melhores homens prefiram a tudo: a glória perene às coisas perecedouras. A grande maioria porém farta-se à maneira do gado" (fragmento 29).


Assim como o gado é levado à força para pastar (que é a felicidade do gado), Heráclito fere os humanos com sua ironia, comparando-os aos animais; ele procura conduzir em direção ao prazer próprio do homem: "Pensar sensatamente é a mais elevada perfeição, e é sabedoria dizer a verdade e agir de acordo com a physis, ouvindo-a" (fragmento 112). Entretanto, "asnos preferem palha ao ouro" (fragmento 9).


Propondo uma sabedoria que cada qual deve buscar por si mesmo, usando o poder de pensar de que dispõem, ele critica as superstições, as crenças tradicionais, os rituais de sacrifícios: "Purificam-se manchando-se com outro sangue ... E à estátuas dirigem suas preces, como alguém que falasse com casas, ignorando o que são deuses e heróis" (fragmento 5).


A maioria dos filósofos prefere não traduzir suas palavras fundamentais, e as deixam permanecer em grego: logos, physis, polemos, etc. Desde a ampla abrangência da palavra physis, perdida já ao tempo de Aristóteles e muitas vezes traduzida por natureza. Polemos é normalmente traduzida por luta, combate; desta palavra sai polêmica, que é também combate, mas num nível diverso. Polemos é o embate primordial de que os próprios contendores emergem.


Logos ultrapassa a todas as palavras em dificuldade. Em cada sentença, uma tradução seria mais pertinente que outra. Traduzem-na por razão, pensamento, percepção, sabedoria, palavra ... mas sempre evidenciando uma ligação com a possibilidade de conhecer, com o modo autêntico de acontecer a sabedoria, com a aparição do saber na palavra.


As fundamentais palavras de Heráclito (physis, logos, luta, fogo) não funcionam como conceitos abstratos, que devamos definir. É uma forma de falar, de pôr à luz. Elas se apóiam umas nas outras, como em uma construção. Possuem, todas, poderosa ambivalência. Logos não se contrapõe a physis, como mais tarde o pensamento se oporá à natureza, o sujeito aos objetos, em busca da objetividade do conhecimento.


Se physis é o domínio de todos os domínios, o logos é também da physis. Sendo ela o perene emergir, como um clarão que nunca se apaga, o logos deve estar no centro mesmo deste brilhar, e o logos humano deve “escutar”, receptivo, a sua voz e fazê-la florescer em palavras.


Se a Natureza - no sentido divino e abrangente do momento inaugural - é para os primeiros gregos o “ser dos entes” que vêm à existência, se é o permanente emergir, é preciso que os humanos, de olhos acesos e de alma seca e brilhante (pois a alma de brilho seco é a mais sábia – fragmento 118) saibam cantar em obras o clarão da verdade, em templos e estátuas de mármore, e na palavra dos pensadores.


Os entes só têm o sentido que apresentam (esse mar, esse sol, nossa polis, os deuses e os heróis) porque um mundo foi instaurado e cada coisa brilhou em seu lugar: o teatro e as tragédias, os navios e as muralhas, as novas leis da cidade...


Heráclito não é apenas o pensador do rio fluindo sem parar; é também o pensador do fogo, pois todas as coisas são uma troca pelo fogo. O fogo queima e destrói, mas nunca tudo de uma vez ao mesmo tempo, e sim “segundo medidas”. Ele garante: "Este mundo não o fez nenhum deus nem homem. Sempre foi e será como um fogo sempre vivo".


O fogo aquece, constrói e destrói. Mas, sobretudo, ilumina: o fogo etéreo está no relâmpago que tudo dirige, nas almas secas, brilhantes, no brilho dos olhos abertos. Heráclito gostaria de arrancar todas as pálpebras que fecham os olhos humanos para que enxerguem o brilho do logos, para que “correspondam” (como um eco responde) com seu coração, à lei da divina physis, à lei da polis e à lei do logos da psique, da alma, que continuamente cresce.


"As coisas de que [há] visão, audição, aprendizagem, só estas prefiro" (fragmento 55)


"Os olhos são testemunhos mais exatos que os ouvido" (fragmento 101)


"Maus testemunhos são para os homens olhos e ouvidos se almas bárbaras eles têm" (fragmento 107)


"Limites da alma não encontrarias, nem todo o caminho percorrendo; tão profundo logos ela tem" (fragmento 45)


"De alma é [um] logos que a si próprio se acrescenta" (fragmento 115)


"Não de mim, mas do logos tendo é sábio homologar. Tudo é Um" (fragmento 50)


"Articulações: inteiro-não-inteiro, concorde-discorde, consonante-dissonante, e de tudo um e de um tudo" (fragmento 10)


"Este mundo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem dos homens, mas sempre foi, é e será, um fogo sempre vivo, acendendo-se e apagando-se segundo medidas" (fragmento 30);


"Transmudando-se, repousa" (fragmento 84)


"Para o deus são belas, boas e justas, todas as coisas; foram os homens que tiveram umas coisas por justas e outras por injustas" (fragmento 112)


"O deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; varia como o fogo que ateado a especiarias é chamado conforme o perfume destas" (fragmento 67)


"O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, a uns manifestou como deuses, a outros como homens; de uns fez escravos, de outros livres" (fragmento 53)


"Devemos saber que o combate é comum a tudo e que a luta é justiça; as coisas nascem e morrem pela luta" (fragmento 80)


"Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia reciprocamente tensa, como a do arco e da lira" (fragmento 51)


"Há só uma coisa sábia: compreender o pensamento que, como tal, governa tudo através de tudo" (41).


Os fragmentos de Heráclito são tocantes por sua força e beleza. Ele nos fala do Um, que em si mesmo se diferencia, abrindo-se em um jogo de riqueza plural, um íntimo combate que aos próprios contendores faz surgir: deuses ou homens, livres ou escravos. Ouçamos um pouco suas palavras.

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