Força ou Processo Vital ? - A Abordagem Sistêmica de Carillo


Em artigo anterior (“Hahnemann – A Medicina e o Científico”) havíamos terminado nossas discussões expondo as lacunas (ou insuficiências) que, a nosso ver, estão subjacentes à teoria construtiva de Hahnemann acerca da Homeopatia. Agora cumpre discorrer sobre uma nova abordagem desenvolvida pelo prof. Romeu Carillo Junior, qual seja, uma abordagem calcada em preceitos/metodologias contemporâneas: uma abordagem sistêmica.

Em seu livro “Homeopatia, Medicina Interna e Terapêutica” o prof. Romeu nos descreve, de uma maneira admiravelmente sintética, o núcleo rígido (continuaremos a nos utilizar de uma abordagem Lakatosiana da Filosofia da Ciência) que irá compor a sua Teoria Sistêmica do Processo Vital e que nós passaremos a contrapor à Teoria Construtiva Hahnemanniana, visualizando-a como a melhor proposta de resolução das grandes lacunas deixadas pela adoção do conceito de Força ou Princípio Vital como fundamentador paradigmático da ciência homeopática.

“O organismo vivo apresenta-se como um maravilhoso universo de funções correlacionadas, realizadas de forma coordenada, com a participação de todas as suas células, da mais simples a mais diferenciada. No interior das células, por sua vez, diferentes orgânulos cumprem seus papéis determinados pelas necessidades do conjunto, numa impressionante consciência do todo.”

“Algumas fases desse misterioso mecanismo de manutenção da vida já estão devidamente estudadas e compreendidas. Uma delas é a necessidade da manutenção das chamadas constantes internas, isto é, para que o organismo tenha condições de desempenhar plenamente suas funções, certos fatores devem estar controlados dentro de limites determinados, tais como a pressão arterial, quantidade de oxigênio e gás carbônico no sangue, temperatura, glicemia, etc... Esses limites, no entanto, foram tomados pela comunidade científica médica dominante como indicadores de saúde e doença de forma incondicional, o que constitui um erro conceitual extremamente grave.”

“Considerando essas variações individuais, o desvio das constantes é o estímulo que aciona o mecanismo de auto-regulação, que tem a função de restabelecer a normalidade...  Esta função é cumprida de forma impressionantemente coordenada por todos os orgãos e tecidos.  Sua organização, no entanto, não obedece ao padrão fisiológico topográfico proposto pela fisiologia convencional, mas fundamenta-se nas relações dinâmicas entre orgãos, formando o que poderíamos chamar de Sistemas Funcionais. Num certo momento, com a finalidade de manter  determinada constante, orgãos de diferentes sistemas topográficos assumem caráter cooperativo.”

”A cadeia de manutenção das constantes internas está, portanto, constituida por Receptores, responsáveis pela captação do estímulo, Orgãos de Aferição, que recebem o estímulo dos receptores e se encarregam de avaliar os níveis da constante considerada, Orgãos de Processamento da informação aferida, Orgãos Detonadores  do estímulo de compensação e finalmente, Orgãos Efetores que, em conjunto, estão encarregados das correções necessárias para o resultado final desejável. Como subproduto desta reação, surgem substâncias tóxicas, que deverão ser eliminadas por emunctórios de escolha. Este conjunto forma um sistema funcional. Evidentemente, para manutenção de todas as constantes internas, são necessários inúmeros Sistemas Funcionais, que atuem simultaneamente e de forma sincrônica.”

Para uma melhor compreensão da Teoria Sistêmica de Carillo (nós preferiríamos denominar Teoria dos Sistemas Complexos – mais adiante discutiremos sobre o que implica uma teoria de Sistemas Complexos), devemos, num “giro de 180 graus”, caminhar, do conceito de Força Vital para o conceito (Complexo) de Processo Vital. Isso implica na compreensão de todos os “sistemas/estruturas funcionais”, ou melhor dizendo, no entendimento: dos processos dissipativos, das estruturas constituintes, da autopoiese, dos processos cognitivos e adaptativos e dos padrões de organização de um sistema vivo.

Essa será a nossa tarefa: caminhar por esses conceitos, analiticamente, em busca da grande síntese, que possa abarcar e resolver as “brechas” deixadas pela teoria construtiva hahnemanniana. Buscaremos a discussão e as implicações de cada aspecto dessa nova teoria, procurando não apenas sumariza-la, pois isso não valeria o nosso esforço de situa-la “na vanguarda do conhecimento científico emergente”, nem como a real possibilidade do resgate de sua intrínseca cientificidade.

ABORDAGEM SISTÊMICA - MÉTODO CONSTRUTIVO CIENTÍFICO
Sistemas e Modelos
A tarefa de observar/explicar os fenômenos que relativos ao mundo em que vivemos, com o fim de construir modelos que permitam fazer previsões, controlar ou mesmo influenciar tais fenômenos foi e é uma das principais funções da ciência. A importância da construção de modelos explicativos de fenômenos que acontecem ao nosso redor baseia-se no fato de que a construção destes modelos está, ela mesma, diretamente vinculada à própria avaliação das teorias científicas.

Durante muito tempo, a ciência desenvolveu métodos que, a seu ver, levavam a uma descrição exata dos processos físicos e naturais. A ciência baseava-se em leis deterministas e era associada à certeza. Assim, considerava-se que a matemática e as relações numéricas e os processos puramente analíticos nos levariam a um conhecimento mais seguro, além de progressivos. Estes métodos, em geral, não “premiavam” os assim chamados processos interativos, que podem nos conduzir a modelos que representem, em um grau absolutamente distinto, os fenômenos que estamos estudando.

Para especificar os passos que nos levam a obter os modelos a que estamos aludindo é necessário ter primeiramente uma definição formal do que sejam sistemas, como também citar os mecanismos e ferramentas disponíveis que permitirão obter tal modelo. Como se verá adiante, as ferramentas utilizadas e as características destas são de fundamental importância para que o modelo obtido responda de forma satisfatória ao sistema observado.
Então, antes de estabelecer qual é a tarefa do construtor do modelo, é necessário definir o que se entende por sistema. Podemos definir um sistema como uma coleção de agentes, onde cada um comporta-se de um modo, isto é, possui um comportamento próprio, capaz de interagir com os outros, para satisfazer um conjunto específico de exigências e manter um comportamento coerente com seu ambiente.

Os agentes referidos poderiam ser desde simples células, genes, formigas, variáveis numéricas, ou até mesmo um organismo humano. Estes agentes, segundo a definição de sistemas utilizada e conforme dissemos anteriormente, possuem um comportamento próprio e interagem com os outros agentes, influindo em seus comportamentos e sobre o ambiente. Tal fato fornece um indicativo claro da existência de relações agente-agente e agente-ambiente.

Para poder afirmar que os agentes exibem comportamento, é necessário haver um conjunto de estruturas, escolhidas pelo observador, onde é representado o conhecimento dos agentes, e através das quais são adquiridas as estratégias de adaptação de cada agente, para responder às exigências ambientais. As exigências ambientais podem mudar com o tempo, o que implica que as interações entre agentes do sistema e destes com o ambiente, não são estáticas. Assim, as estruturas comportamentais do sistema devem aceitar as adaptações que o comportamento dos agentes deve ter para responder de forma adequada às exigências do ambiente e às exigências dos outros agentes.

O conhecimento “representado” nestas estruturas servirá para obter a descrição do sistema por meio do comportamento de seus agentes. Isto é, em cada instante de tempo, o comportamento dos agentes será determinado por uma instância dessas estruturas. Assim, a descrição comportamental do sistema é uma série temporal determinada pelas instâncias de cada agente.

Uma vez identificados os agentes do sistema e as estruturas que contêm o comportamento de cada agente, para especificar completamente o sistema, necessita-se do estabelecimento das relações agente-agente e agente-ambiente. O estabelecimento das relações entre os agentes expressa as limitações de recursos disponíveis no ambiente e, como a distribuição dos recursos entre os agentes do sistema, influi em seus comportamentos.

Uma vez definido o que se entende por sistemas, pode-se estabelecer a tarefa do construtor do modelo. De maneira formal, a tarefa do construtor consiste na identificação dos agentes e de seus comportamentos, assim como das relações significativas entre os agentes do sistema, e deles com o ambiente. Para realizar esta identificação, o construtor tem à disposição várias ferramentas e procedimentos de análise.

O primeiro passo na construção de um modelo é a divisão do seu “universo” em um sistema e seu ambiente. Isto significa delimitar o sistema e identificar os agentes que pertencem ao mesmo e aqueles que não pertencem.

O segundo passo é representar o comportamento dos agentes, que é percebido pelo observador como uma relação causa-efeito. Assim, as estruturas comportamentais podem ser representadas como uma estrutura de estímulos e respostas. O critério usual da escolha dos estímulos e respostas está baseado no conhecimento que o observador possui sobre o sistema.

Por estes motivos, a modelagem de sistemas tem muito de arte, além de ciência, já que seu estudo está baseado na premissa de modelar o observado pelo construtor do modelo que possui, além do conhecimento objetivo obtido das observações e do acúmulo de informações, muito conhecimento subjetivo, intuitivo e qualitativo do sistema, obtido da sua experiência no convívio com os fenômenos observados.

Uma vez identificados os agentes, comportamentos e relações, poderá ser construído um modelo do sistema que, testado com o sistema real, ou seja, com o seu universo de estudo, poderá modificar-se e ajustar-se. É através deste processo interativo que o observador forma o modelo final do sistema. Assim, este processo de identificação pode ser visto como um processo interativo que obtém, a cada interação, novo conhecimento sobre o sistema observado.

Identificação de Sistemas
Existem diferentes maneiras de obter um modelo para um determinado sistema, incluindo modelos matemáticos, puramente cognitivos, intuitivos e gráficos.
 Para construir um modelo de um sistema, pode-se adotar, em geral, duas formas:
a) baseando-se em leis físicas e relações que supostamente governam o comportamento do sistema, ou;
b) utilizando procedimentos de identificação, para inferir um modelo baseado em dados observados do sistema. Isto ocorre quando a modelagem direta é impossível, devido a que o conhecimento do mecanismo do sistema é incompleto, ou as suas propriedades exibidas mudam de forma imprevisível.

Muitos sistemas, especialmente os sistemas vivos, cujo comportamento é classificado como de difícil identificação, “resistem” a procedimentos matemáticos. Nestes casos, o observador tem basicamente dois problemas:
a) a identificação das partes componentes do sistema (agentes, comportamentos e relações) e;
b) a dificuldade de representar o conhecimento e a intuição que ele possui do sistema com as técnicas de uma análise quantitativa.

Por tal motivo, para poder obter um modelo do sistema com as ferramentas disponíveis, o observador deve, tanto quanto possível, melhor compreender a realidade observada. Esta necessária compreensão observa-se basicamente nas relações entre agentes e entre eles e seu ambiente, já que os procedimentos quantitativos são limitados no tratamento de relações altamente não lineares e dinâmicas.

Entre os sistemas que são classificados como de difícil identificação, podem ser citados: os processos de tomada de decisão, os sistemas econômicos, os sistemas físicos e químicos, e os processos biológicos, entre outros.

Os processos de tomada de decisão, por exemplo, podem ser considerados como sistemas de difícil identificação, devido às influências dos fatores humanos sobre eles. A habilidade na manipulação de conceitos vagos, mal definidos, ambíguos; a tolerância à imprecisão e, conseqüentemente, a inferência de conhecimento destes conceitos, são habilidades humanas. Assim, os fatores humanos são muito complexos para serem descritos com todas as suas propriedades, limites, tolerâncias, por intermédio de uma ferramenta matemática, que seja capaz de descrever e integrar todas as medidas mencionadas anteriormente.

A complexidade dos sistemas anteriormente citados inclui multi-dimensionalidade, estruturas nem sempre hierarquizadas e interações mútuas. Estas características podem ser assim resumidas:
a) os sistemas exibem um rico e variável comportamento, sendo governados por complexas relações causa-efeito;
b) o comportamento de sistemas inteiros é, em algum sentido, mais que a soma de suas partes, o que é um indicativo de não-linearidade;
c) os sistemas mencionados podem se desviar do comportamento previsto sobre a base de qualquer aproximação dinâmica, e o desvio pode variar com o tempo.

Assim, surge a idéia da identificação difusa de sistemas, onde um conjunto de dados de entrada-saída do sistema é utilizado para estimar o comportamento de regras lógicas, que representam um modelo do sistema a ser identificado. Tais sistemas são aqueles que denominamos de Sistemas Complexos.

Para o alcance dos seus objetivos primordiais, os modelos sistêmicos complexos devem cumprir, em síntese, os seguintes requisitos básicos:
a) serem capazes de processar as entradas ambientais e armazenar o conhecimento obtido a partir da experiência. Isto significa que o modelo utiliza dados do sistema real;
b) organizar esse conhecimento para reconhecer situações anteriores;
c) adaptar-se aos requerimentos e mudanças ambientais e
d) descobrir os agentes relevantes do sistema em questão, assim como as relações existentes entre os diferentes agentes do sistema.

POR QUE “TEORIA DOS SISTEMAS COMPLEXOS” ?
“Consideremos um tapete contemporâneo. Comporta fios de linho, de seda, de algodão, de lã, com cores variadas. Para conhecer esta tapeçaria, seria interessante conhecer as leis e os princípios respeitantes a cada um destes tipos de fio. No entanto, a soma dos conhecimentos sobre cada um destes tipos de fio que entram na tapeçaria é insuficiente, não apenas para conhecer esta realidade nova que é o tecido (quer dizer, as qualidades e as propriedades próprias de cada textura) mas, além disso, é incapaz de nos ajudar a conhecer a sua forma e a sua configuração. Primeira etapa da complexidade: temos conhecimento simples que não ajudam a conhecer as propriedades do conjunto. Umas constatação banal que tem conseqüências não banais: a tapeçaria é mais que a soma dos fios que a constituem. Um todo é mais que a soma das partes que o constituem. Segunda etapa da complexidade: o fato de que existe uma tapeçaria faz com que as qualidades deste ou daquele tipo de fio não possam exprimir-se plenamente. Estão inibidas ou virtualizadas. O todo é então menor que a soma das partes. Terceira etapa: isto apresenta dificuldades para o nosso entendimento e para a nossa estrutura mental. O todo é simultaneamente mais e menos que a soma das partes.” (Edgard Morin,  “La complexité et l’entreprise”)

O que entendemos por um sistema complexo? Por certo o possuir como característica fundamental a sua “não-linearidade”. Pelo contrário, a determinante, de que muitos sistemas se valem, de exprimirem-se como um gigantesco quebra-cabeças, por exemplo, não constitui o sentido de complexidade que visamos, pois,  por mais complicado que seja, todo quebra-cabeças possui uma única solução.

Dados os seus componentes constitutivos (na verdade componentes que se constituem eles mesmos também como sistemas), tais como, por exemplo, os modelos do caos determinístico, das estruturas dissipativas e da auto-organização, por exemplo, entendidos de uma forma complementar então poderemos começar a compreender de que “falam” os sistemas complexos. Porém, mais que investigar a aplicação de tais modelos às ciências humanas, o importante é a idéia que a complexidade engloba, os aspectos dinâmicos e simultâneos da auto-organização em camadas sobrepostas, em vários níveis interdependentes. E esta idéia leva a uma definição de complexidade bem mais precisa e abrangente.

Assim, mais que uma representação melhor detalhada da realidade, a noção de sistema complexo nos permite pensar a nós mesmos como auto-referências vivas e irredutíveis de um mundo de múltiplos níveis de desenvolvimentos simultâneos. Somos parte do universo que estudamos como um sistema aberto e vivo, que se auto-organiza em diferentes tempos e estratos de observação. E, portanto, o conhecimento científico (como um auto-conhecimento que também o é) representa as “varias faces de uma mesma moeda” (por mais paradoxal que seja essa metáfora) de um único processo.

A auto-organização é uma das características dos sistemas abertos e não-lineares ou complexos, que consiste na capacidade de aprender com os próprios erros. Auto-organizar-se é corrigir-se frente aos “ruídos” e à “redundância” da própria vida. Quanto mais organizado interiormente um sistema for, maior a sua criatividade e adaptação frente às dificuldades de sua evolução.

 No que se refere aos sistemas vivos (objeto de nosso estudo) se observarmos quais são os “erros” através dos quais esse sistema se organiza, distinguiremos diferentes tipos de demanda, tais como as demandas de singularização (ou de diferenciação criativa), as demandas de autonomia e identidade ou de desenvolvimento, envolvendo as funções de nutrição, proteção e reprodução deste sistema (estruturalmente organizadas), e assim por diante. Enquanto o primeiro grupo de “erros” se refere à diferenciação de uma singularidade no universo, o segundo grupo de erros têm sua origem nos processos de nutrição do sistema que se desenvolvem de forma extremamente híbrida e simbiótica, seja em relação ao organismo materno, ao meio externo concebido como natureza ou a qualquer forma de coletividade.

Assim, aprender a alimentar-se, a defender-se e a sobreviver, sem ajuda de outro organismo, são funções de manutenção do sistema que contrastam com sua verticalização interior; são os limites horizontais e exteriores da auto-organização. Enquanto uma parte que quer ser um símbolo da unidade do todo, sem levar em conta o interesse das outras partes, centraliza o sistema “ditatorialmente”, os interesses específicos das partes, sem a visão abrangente da totalidade, tenderia a desagregar e fragmentar: nem o idealismo universal e abstrato, nem o relativismo concreto de cada realidade, assim o complexo quer pensar o universo concreto em suas múltiplas dimensões abstratas e simultâneas.

Uma Teoria de Sistemas Complexos funciona através de alguns postulados epistemológicos, tais como: um princípio dialético (ou a dualidade dentro da unidade, ou ainda a síntese como unidade entre tese e antítese), um princípio de recursividade organizacional (ou da causalidade circular de retro-alimentação múltipla) e um princípio da representação “hologramática”, usando a terminologia de Morin (segundo o qual o todo está contido em cada parte e as partes estão contidas no todo). Por isso, a partir destes princípios podemos pensar em uma cientificidade que valorize o diálogo como conflito produtivo, que incentive a adaptação como forma de vencer as dificuldades e que sempre nos remeta à responsabilidade do universo em que estamos inseridos.

No empirismo relativista, o pesquisador se limita a uma descrição exaustiva da realidade estudada, especificada em todas as suas particularidades, sem nenhuma relação com o drama universal do ser humano. Tal atitude adicionada à tendência de especialização do saber, leva, necessariamente, a uma visão parcial e fragmentada da realidade. Assim, não só as descrições que desprezam a problematização, mas também os discursos especializados que não se enquadram em um contexto geral são resultantes desta atitude pretensiosa em que o pesquisador se apropria de um determinado aspecto dos discursos pesquisados em detrimento de outros, para “conservá-los” em suas especificidades.

Nas interpretações paradigmatizadas, as teorias são utilizadas para explicar a realidade: seja reforçando diretamente a lógica da dominação, seja pela aparente crítica ao sistema que, no entanto, corporifica a ruptura entre ciência e saber. O marxismo ortodoxo, por exemplo, que lê o contexto a partir das categorias de modo de produção, luta de classes, capitalismo, excluindo de seu universo interpretativo todos os outros níveis de saber, vistos sempre como representações ideológicas. Aqui, ao inverso do empirismo relativista, é o universal que é utilizado para mutilar o particular, a generalidade que serve para encobrir o específico.

Mesclando os fatores cognitivos com o aspecto epistemológico, a Teoria Sistêmica Complexa de Carillo procura estabelecer um modelo metodológico de níveis “multi-subjacentes” de interpretação:  o informativo, analítico, objetivo e impessoal, observa e descreve o acontecimento; o segundo nível representa a expressão dos referentes subjetivos e pessoais, a acumulação do conhecimento; o terceiro, interpretativo e paradigmático, é intersubjetivo e interpessoal, contrastando diferentes interpretações do evento; e, finalmente, o quarto e último (ao menos por agora) nível, biotípico, transpessoal e transubjetivo, em que o sentido experiencial da linguagem é reconcebido e resignificado. Essa será a nossa leitura prospectiva resultante da transformação criativa a que fomos submetidos ao entrarmos em contato com essa nova abordagem do saber médico.

O FENÔMENO DA DISSIPAÇÃO
Ao se mencionar o nome de Ilya Prigogine logo vem à nossa mente a figura do grande pensador que mais contribuiu nas pesquisas relacionadas ao que poderíamos denominar “epistemologia do campo da incerteza”, que caracterizaria toda a forma de matéria e mais especificamente por sua teoria das estruturas dissipativas, detalhada em seus livros “A Nova Aliança” e “O Fim das Certezas”, onde afirma que ”o há mais situações estáveis ou permanência que nos interessem, mas sim evoluções, crises e instabilidades”. Nesses trabalhos, juntamente com sua colaboradora, Isabelle Stengers, o cientista acusa a ciência moderna de estar sendo “contra a natureza, pois nega a complexidade e o devir do mundo em nome de um mundo cognoscível e eterno, ditado por um pequeno número de leis simplistas e imutáveis”.

Segundo Prigogine, essa postura, infelizmente, conduz a uma visão mecanicista da natureza, na qual a ciência é apenas um instrumento de domínio e onde o cientista, assim como toda a humanidade, não faz parte desse seu objeto do domínio. A complexidade do mundo, revelada por Prigogine, pede por uma ciência onde “o diálogo experimental seja baseado nos dois elementos essenciais da relação entre homem e a natureza: compreensão e modificação”. A complexidade do mundo pede uma visão totalizante. Nessa visão, a química, a física e as demais ciências ditas instrumentais estão mais próximas das ciências humanas do que se imagina. Essa proximidade, que era evidente na Grécia antiga, torna-se novamente perceptível quando Henri Poincaré (1854-1912), ainda no final do século XIX, inaugura a Teoria do Caos: as certezas, nas ciências exatas, são relativas ao grau de aprofundamento da investigação objetiva.

A teoria de Poincaré é a base da teoria de Prigogine. A idéia central da Teoria do Caos é a de que pequenas alterações nas condições iniciais de um sistema podem provocar mudanças drásticas nesse sistema, seja no clima de uma região, em um ser humano, na população de pássaros de um ecossistema, na erupção de um vulcão ou no ritmo dos batimentos cardíacos. Para Poincaré (o idealizador da primeira teoria sistêmica) os sistemas formados por um pequeno número de elementos e sujeitos à observação estariam determinados por um conjunto de condições iniciais que nunca poderão ser conhecias com precisão absoluta, o que, em conseqüência, faria com que, pouco a pouco, se perdesse o domínio das mesmas, tornando os sistemas “imprevisíveis”. As leis deterministas poderiam se cumprir, mas seria impossível a solução exata da totalidade das equações implicadas. Por exemplo, em nosso sistema planetário, os corpos celestes deveriam obedecer rigorosamente às leis gravitacionais e às leis de Newton, mas esses corpos interagem e essa interação provoca alterações infinitesimais no movimento dos planetas. Essas interações podem desequilibrar o sistema planetário, tornando-o suscetível a ser caótico.

As idéias de Poincaré ficaram esquecidas até que algumas rupturas se deram no campo da física: as relatividades de Einstein, que mostraram que o espaço e o tempo não eram absolutos e que a massa de uma partícula móvel dependia de sua velocidade e a física quântica, na qual o binômio objeto medido/instrumento de medição se unia a um terceiro elemento – de “discórdia” –, o operador e onde, ainda assim, a precisão da medida era limitada pelo princípio da incerteza de Heisenberg.

Conhecida contemporaneamente em matemática como Teoria da Catástrofe, o caos estuda as possíveis leis reguladoras do movimento aleatório e imprevisível dos sistemas, a maneira como mudanças matematicamente contínuas podem levar a resultados inesperadamente súbitos ou matematicamente descontínuos. A correlação entre causas e efeitos aparentemente desconexos também foi expressa pelo matemático, pesquisador e meteorologista do MIT, Edward Lorenz (1917) que, ao aplicar e constatar a ocorrência das leis do que ele denominou “caos determinista” em fenômenos meteorológicos afirmou que “o bater de asas de uma borboleta na Califórnia pode causar um tornado na Austrália amanhã”, batizando de “efeito borboleta” ou a ocorrência das leis do caos determinista em efeitos macroscopicamente observáveis. A expressão caos determinista pode parecer contraditória, mas ela somente significa que a perda da informação que caracteriza o caos não é devida a circunstâncias aleatórias ou randômicas, como é o caso do que ocorre na física quântica, mas, pelo contrário, essa perda se dá exatamente devido às leis deterministas da física clássica.

O comportamento caótico de sistemas pode ser encontrado em praticamente todas as partes da natureza, tendo sido considerado sua melhor representação. Estudando a teoria do caos, juntamente com a Segunda da Lei da Termodinâmica, que dita que a entropia – ou grau de desorganização – total de um sistema é sempre crescente, Prigogine estabeleceu o conceito de sintropia. A sinergética é o campo da físico-química que comprova, com os sistemas auto-organizadores observados na termodinâmica, como a inter-relação e a interdependência de partículas geram sintropia, que é a medida de organização de um sistema, ou seja, o contrário de entropia.

Prigogine descreveu matematicamente como a Segunda Lei da Termodinâmica pode deixar de atuar em algumas situações. Segundo ele, flutuações ao acaso podem dar origem a formas mais complexas, a partir de grandes perturbações em um sistema, as quais podem dar início a mudanças importantes, tornando o sistema altamente frágil. Pode surgir então uma súbita reorganização para uma forma mais complexa. As perturbações em um sistema são a chave para o crescimento da ordem. Isso seria uma forma de explicar, por exemplo, o surgimento de vida nos planetas. As configurações da natureza interagem com o ambiente local, consumindo energia dele proveniente e fazendo retornar a ele os subprodutos dessa utilização de energia. Mas a suscetibilidade à dissolução e à morte andam junto com esse potencial de crescimento e de aumento da complexidade. A essa teoria sistêmica, que lhe deu o Nobel, Prigogine deu o nome de Teoria das Estruturas Dissipativas.

A Teoria Sistêmica de Carillo incorpora essas noções na medida em que todo sistema vivo deve ser visto por excelência como instável. Porém é a partir de suas instabilidades que os sistemas vivos encontram a sua estabilidade. O Processo Dissipativo pode, então, ser encarado como a interação do organismo e suas Barreiras Seletivas com os Inputs (requisitados ou não por esse sistema) Externos, gerando no seu interior Inputs Internos (informação, conhecimento) que serão processados e, afinal, assimilados e/ou eliminados. Assimilação e Dissipação, ou seja, aquilo que transformamos, quer seja o produto puramente físico ou mesmo cognitivo, produto esse que é o substrato de nossa autopoiese, revelam o que poderíamos denominar “primeiro nível” (não em um sentido hierarquizante) da fundamentação funcional dos sistemas vivos. “Aquilo que assimilamos é o substrato da correção das nossas imperfeições internas.” (Carillo) Esse é o primeiro passo; continuemos no sentido de podermos apreender a abrangência totalizante da teoria.

A AUTOPOIESE
O conceito de Autopoiese só pode ser entendido como uma forma de organização sistêmica, na qual os sistemas produzem e substituem seus próprios componentes, numa contínua articulação com o meio. Os sistemas autopoiéticos são, portanto, auto-catalíticos, isto é, não apenas estabelecem, mas também mantêm uma fronteira peculiar com o mundo circundante — fronteira essa que simultaneamente os separa do meio ambiente e o conecta com ele. Nós, seres humanos, somos grandes exemplos de sistemas autopoiéticos — reproduzimo-nos numa co-evolução incessante com o meio: respondemos, (ou seja, reagimos, adaptamo-nos) às mudanças do ambiente e este responde (reage, "adapta-se") à nossa intervenção humana.



Cada indivíduo tem características que refletem sua estrutura interna peculiar. Essa estrutura está aberta às mudanças: inevitavelmente evoluímos (evolução vista aqui não no sentido linear e progressivo, mas sim no sentido de mudança), no curso de nossas vidas. Como as pessoas dividem entre si o que experimentam e o que sabem (ou pensam que sabem) acerca de si mesmas e do mundo, muitas semelhanças se originam das maneiras pelas quais elas vêem, interpretam e entendem os fenômenos vitais. Mesmo assim, cada indivíduo acaba por “expressar” esse processo único, desde a infância até a velhice. Em todo ato físico, emocional ou mental esse particular “processo de ser” de cada indivíduo reproduz a si próprio, mantendo uma fronteira peculiar com o mundo circundante e "evoluindo" em equilíbrio/desequilíbrio com ele. A reprodução e evolução de cada indivíduo, em conexão vital com o seu meio ambiente, é a principal característica da autopoiese.

Para Carillo a autopoiese deve ser vista como “O processo pelo qual as estruturas e os programas de ação do sistema participam da renovação, produção, estimulação e transformação dos outros componentes, tendo como objetivo garantir a manutenção, o desenvolvimento ou a adaptação do padrão de organização que, por sua vez, o determina”. Podemos ver claramente que, para termos o real entendimento do sentido da autopoiese para Carillo, ainda necessitamos avançar em nossa discussão. Nesse momento, porém, cumpre realçar uma diferenciação que consideramos fundamental entre o conceito autopoiético em Carillo e em Maturana e Varela, os seus “divulgadores” originais. É o que faremos a seguir. 

AUTOPOIESE – UMA CLAUSURA ?
No livro “A Árvore do Conhecimento” Maturana e Varela propõem-se a trabalhar com construções epistemológicas sofisticadas para contornar muitos dos inconvenientes que a abordagem cartesiana havia legado para a definição do ser vivo. Os lugares-comuns como “mobilidade”, “reprodutividade” ou outros, passam a ser descartados em detrimento das “relações” e “interações” que guardam as distinções entre o biológico e o não-biológico.
A diversificação e a plasticidade possíveis na família de moléculas orgânicas, segundo esses autores, possibilitaram “... a formação de redes de reações moleculares que produzem os mesmos tipos de moléculas que as integram, ao passo que limitam o contorno espacial em que se realizam... Tais redes de interações moleculares que se produzem a si mesmas e especificam seus próprios limites são... os seres vivos”.(Maturana, Varela – “A Árvore do Conhecimento”).


Unidade é o primeiro dos conceitos a merecer destaque na obra de Maturana e Varela, especialmente levando em conta o domínio das explicações científicas. A distinção entre os objetos é um dos atos cognitivos mais elementares que existe, mas isso não quer dizer que a distinção dependa exclusivamente da “coisa” a ser observada. Para os autores, nossa organização individual complementa os contrastes que experienciamos no cotidiano.
Na perspectiva metodológica dessa proposta de biologia, não existem diferenças funcionais ou relacionais entre, por exemplo, os olhos de um sapo e os do Homem. Nesse sentido, todo observador é responsável pelas distinções que faz ou deixa de fazer.

O que Maturana observa é que tanto a nossa visão quanto a de outro organismo vivo é produto de “acoplamentos” realizados nas determinadas estruturas fisiológicas a fim de realizar aquele padrão de organização decorrente da relação orgânica entre ontogenia, filogenia e meio ambiente. No caso humano, o domínio das descrições semânticas possibilitou que “visões de mundo” individuais adquirissem valor real. Esse é o cerne do limite entre real e ilusório para Maturana.

Falamos de um tipo de fenômeno em que a possibilidade de distinguir “algo do todo” depende da integridade dos processos que o possibilitam “... A característica de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como distinto do meio circundante mediante sua própria dinâmica, de modo que ambas as coisas são inseparáveis.” (Maturana, Varela – “A Árvore do Conhecimento”)

Maturana trabalha, nestes termos, de acordo com uma perspectiva sistêmica, que especifica impreterivelmente dois domínios de atuação para uma unidade percebida (seja ela uma célula, um sapo, um formigueiro, uma sociedade humana, uma galáxia etc.) De um lado, este sistema tem uma fenomenologia de atuação como unidade, mas por outro lado, concomitantemente, também é influenciado pelas alterações individuais dos seus componentes. Até aqui não parece haver discordância entre a posição desses autores e a de Carillo.

Os conceitos que derivam desse tipo de abordagem atingem profundamente questões filosóficas e humanísticas. Não apenas os fenômenos relacionados aos processos fisiológicos são reconsiderados, mas todos os desdobramentos desse operar enclausurado dos organismos (clausura essa tornada explicita nas teses de Maturana e Varela).
Alude-se aqui, à perspectiva de sistema concernente à existência da vida. O sistema que configuraria um ser biológico seria, por definição, fechado. Assim sendo, não existiria em seu operar, absolutamente, a possibilidade de inserção de “dados”. Os inputs e os outputs não existem nesse tipo de sistema, que se conserva e se realiza na interação com as perturbações colocadas pelo meio a fim de manter seu padrão de organização através de adaptações em sua estrutura. Essencialmente, seria um erro lógico pensar em termos de perturbações instrutivas, tanto para organismos quanto para os ramos evolutivos. O que ocorre é uma intricada rede de interelações em que se modificam perenemente os organismos e o meio.

É aqui que mora, a nosso ver, o grande problema. Não conseguimos entender a “constituição” dos níveis autopoiéticos de renovação, como um processo cíclico que procuraria “manter” o padrão de organização do sistema e de acoplamentos e substituições, que se definem em função dos fatores de estimulação, que podem ou não modificar os programas de ação, via processos adaptativos, em sistemas fechados. A autopoiese (como um padrão de rede) onde cada estrutura, ou a própria “super-estrutura” (representada pelo seu padrão de organização) co-pariticipando da produção ou transformação de tudo, jamais pode se estabelecer em um sistema fechado.
   
Feita essa ressalva sobre aquilo que Maturana denomina as “ilusões” a que estamos sujeitos, enquanto sistema fechado vivo (precisamos melhor entender o significado dessa afirmação, confessamos que nos é difícil ...), não podemos negar a grande contribuição de Maturana ao estudo dos sistemas, em particular o ter conseguido teorizar sobre um tipo especial de sistema que é responsável por todo o seu próprio funcionamento, bem como, responsável pelas modificações e alterações que caracterizam sua existência.

Esse sistema criativo encerra nas suas ontologias particulares toda a história das relações estabelecidas desde a formação do planeta, e amplia através do tempo as possibilidades de adaptação acoplando as estruturas aos domínios de ação alterados pela evolução. A existência de um domínio de conduta semântico, assinalado por um observador, é condição para a evolução dos fenômenos mentais nessa perspectiva.

Parece óbvio que, consolidando-se como sistemas ao mesmo tempo autônomos e inter-dependentes, os seres vivos apresentam particularidades definidas por sua organização e estrutura. O que importa na verdade, principalmente para a comunidade científica, é admitir sua prática como a de observadores em seu operar específico e que toda interpretação de mundo adotada não deve negar a possibilidade de existência de outras. O que discutimos aqui é a recomposição da “objetividade” como categoria para a mais adequada distinção, em termos científicos, dos caracteres que se restringem a esse domínio explicativo.

ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA
A definição aplicada aos conceitos de “organização” e “estrutura” encontrada na Teoria Sistêmica de Carillo é da maior importância, principalmente quando temos como horizonte de análise a preocupação central dessa teoria, qual seja a exata compreensão do que se constitui o Processo Vital.. A “estrutura” como conceito, para Carillo, possui uma materialidade inextricável dizendo respeito à concretude dos elementos, componentes ou não de sistemas vivos. A unidade de um ser vivo é, portanto, dada pelo conjunto da sua estrutura química e relacional (não viva) com a sua “organização”. Esta organização (autopoiética por excelência), é o que a torna viva e distinta de uma estrutura inanimada.

No caso dos organismos mais complexos, metacelulares, a história das interações de células com o meio pode ganhar um caráter recorrente. O cão, por exemplo, é composto de células em sua estrutura que configuram uma organização específica. Mas esse cão também foi um organismo unicelular, que manteve as características filogenéticas e deixou de ser um microrganismo para tomar a forma que vemos. O processo que viabiliza a organização metacelular mantendo as interações entre células individuais através da história é denominada “padrão” ou “programa” de organização.

Esse padrão leva organizações e estruturas de uma ordem de complexidade e autonomia até níveis mais elevados, que aumentam a conservação da existência do vivo. Observando-se a recorrência de padrões de organização e estrutura reconhecemos “classes” de unidades. Esse reconhecimento faz parte de um domínio específico de condutas, que são experienciados pelo observador como sendo as explicações científicas.

Toda ontogenia ocorre dentro de um meio que nós, como observadores, podemos descrever como tendo uma estrutura particular, tal como radiação, velocidade, etc. Como também descrevemos a unidade autopoiética como tendo uma estrutura particular, fica evidente que as interações (desde que sejam recorrentes) entre unidade e meio consistirão em perturbações recíprocas. Nessas interações, a estrutura do meio desencadeia as mudanças estruturais nas unidades autopoiéticas: ao contrário do que propõe Maturana, essas mudanças estruturais do meio podem determinar e/ou informar as estruturas internas e vice-versa para o meio. O resultado será uma história de mudanças estruturais mútuas, desde que a unidade autopoiética e o meio não se desintegrem.

ENTROPIA E ORDEM
A ordem é a forma de manifestação e sustentação de vida dos seres. Para se compreender esse fenômeno, deve-se partir de seu inverso, ou seja, do fenômeno da desordem ou entropia universal. O processo da entropia tem origem na tendência característica do universo em apresentar um leque amplo de respostas possíveis a um grupo limitado de perguntas; conforme aumenta-se a entropia (multiplicidade de respostas possíveis) amplia-se o estado de indiferenciação universal, caracterizado pela ausência de identidades.

A ordem origina-se, num processo de comunicação entre um ser e o universo, da capacidade desse ser em receber e fazer uso, de forma controlada, de um grupo de informações, como resposta a determinadas perguntas. Com o processo de comunicação e controle das informações obtidas, o ser cria uma zona de organização à sua volta, ou seja, uma ordem, um padrão de organização das mensagens, passando a se manifestar como vida.

Os sistemas vivos contrapõem-se à desintegração (entropia) para evitar a morte. Diante da tendência caótica do Universo, a morte só ocorre quando a desintegração do padrão de organização interno é mais rápida que o processo de reconstituição. Para garantir a continuidade de existência, os sistemas vivos tentam manter, durante algum tempo, o padrão de organização, através de mecanismos reguladores. Para esse fim, organizam um instrumento especial de armazenamento das informações oriundas do meio externo e do desempenho histórico de comportamentos passados, durante a transmissão das mensagens.

As novas informações vão sendo combinadas com as já armazenadas, ganhando uma nova forma, para se adequarem a novos estágios de desempenho de ordem local como força interna de desenvolvimento. Esse processo recebe o nome de “homeostase”.
A vida implica, portanto, num constante processo de reconstrução interna diante das contingências do meio externo. Assim podemos entender todo sistema vivo não como o “material que subsiste”, mas como padrões que se perpetuam a si próprios.

O padrão de organização das informações ocorre numa situação de tempo e espaço. As ações comportamentais para a manutenção da existência são a própria manifestação do tempo. Por outro lado, essas ações comunicativas entre os seres criam configurações ordenadas, visíveis e não visíveis, num ambiente de vida, manifestando-se como uma unidade espacial, como identidade. Note-se, portanto, que a ordem interna que responde pelo desenvolvimento dos seres vivos não é apenas imposta pelo meio ambiente, mas também pelo próprio sistema. Esse mecanismo de existência vai ganhando complexidade em sua organização, por desdobramento da ordem em unidades autônomas e integradas entre si por meios de comunicação, de forma a tornar o processo aberto e indeterminado.

O PROCESSO ADAPTATIVO
As mais recentes meta-teorias da ciência têm mostrado, como já discutimos, que não existe somente a ordem a partir da ordem, mas também a ordem a partir da desordem, ou seja, a desordem e a incerteza como fatores importantes na emergência de um novo estado de ordem. A importância da incerteza tem sido observada, por exemplo, nas teorias do caos e na teoria da complexidade. Essas teorias assumem que, ao manter um certo nível de desordem, os componentes (agentes) expressariam a “liberdade” para interagir e, então, poder formar ou se adequar a novos padrões. Essa abordagem é comumente denominada processo adaptativo.

Na abordagem do processo adaptativo a aprendizagem é vista como um processo contínuo, no qual as habilidades adquiridas são modificadas (adaptam-se), e formam novas habilidades mais complexas. Esse processo ocorreria da seguinte forma: no início do processo o agente executante apresentaria padrões de desempenho muito instáveis, pois não existiria a interação necessária entre os componentes que formam a habilidade. Com a “prática” aliada ao feedback negativo (erro), o desempenho tornar-se-ia mais estável, o sistema adquiriria nova função, inferindo-se, pois, que uma nova estrutura foi formada ou, melhor dizendo, que haveria ocorrido uma adaptação.

Nesse momento um aspecto importante é a perturbação, que tira o sistema do equilíbrio e causa instabilidade, para que ele possa se adaptar, adquirindo novas funções. Assim se pode assumir que o sistema ganhou em complexidade, pois sem adquirir novos componentes, a estrutura anterior teria adquirido novas funções.

Em outras palavras, a formação de uma estrutura passa a conter o produto desse processo, pois primeiro é necessário haver a estabilização das funções, quando se infere que uma estrutura é formada, para, posteriormente, poder haver a adaptação das mesmas. Dessa forma a aprendizagem passa a ser vista como um “processo cíclico” de instabilidade-estabilidade-instabilidade. Esse mesmo processo é pautado em instabilidades, erros e incertezas, e essas incertezas então devem ter o seu papel no processo de aprendizagem, principalmente ao observar a aprendizagem como um processo que vai além da estabilização, ou seja, como um processo adaptativo.

Em contraste com grande parte das teorias mais ortodoxas (que poderíamos denominar de teorias de esquema), as teorias que incorporam o conceito de processo adaptativo trazem no seu interior a própria explicação da relevância do papel da incerteza, representando mesmo a forma de se “manipular” essa incerteza no processo.

Para se conseguir uma aproximação consistente com a definição mais precisa do conceito de adaptação é preciso ter em conta o que se entende como processo (durante a qual o organismo vivo se adapta a fatores dos meios interno e externo) e como resultado (o resultado desse processo). O conceito de adaptação, assim, pode ser vinculado ao de "stress" o qual é considerado como um estado de tensão geral do organismo que aparece sob a ação de um excitante muito forte (situações extremas). As reações possíveis são de dois tipos:
a) Se o excitante é demasiado forte (intensidade) ou se atua durante longo período (duração), se produz uma fase final de stress-síndrome-esgotamento;
b) Se o excitante não ultrapassa as “reservas” de adaptação do organismo, se produz a mobilização e a distribuição dos recursos energéticos e estruturais do organismo e se ativam os processos de adaptação específica, etc.

As reações de adaptação do organismo vivo podem se dividir em reações de ação rápidas, longas, inatas e adquiridas. As adaptações bioquímicas e fisiológicas às alterações do meio ambiente ou estímulo fisiológico caem em duas categorias baseadas na sua duração. As alterações celular, orgânica ou sistêmica, que ocorrem na mesma escala de tempo, se traduzem por respostas ao stress agudo. Por outro lado, as alterações celular, orgânica ou sistêmica, que persistem por um apreciável período de tempo são ditas adaptações ao stress. Uma das funções da adaptação parece ser a de minimizar o desequilíbrio da homeostase do meio interno e este, por sua vez, melhora a manutenção desse meio pelas adaptações ao stress, favorecendo a efetividade funcional no estado de estabilidade.

Desde os primórdios da evolução, a especialização celular tem levado a formação de distintos órgãos e tecidos, resultando em funções específicas tornando-as, destarte, cada vez mais eficientes. Porém, este desenvolvimento não poderia se transformar em sucesso se não houvesse um sistema central integrado de comunicação que coordenasse os processos metabólicos nos vários tecidos do corpo durante eventos fisiológicos como, por exemplo, no processo da alimentação e jejum, no exercício/stress (sobrecarga e resistência), repouso/convalescença (recuperação ativo-passiva). A finalidade primária desta integração metabólica, neste momento, é de proteger a integridade da homeostase do meio interno (células nobres estruturais) responsável pelo processo de adaptação específica, prevenindo o processo final de stress-síndrome-esgotamento (lesão).

ORGANIZAÇÃO E CONSCIÊNCIA
Segundo Capra (“A Teia da Vida”), de acordo com os dados antropológicos geralmente aceitos, a evolução da anatomia da natureza humana teria sido virtualmente completada há 50.000 anos. Atingido esse nível, a complexidade do padrão de organização da anatomia do corpo e do cérebro humano vem se mantendo em estrutura e dimensão há muito tempo. A mente, ou estrutura mental representa a dinâmica resultante do conjunto de relações existentes dentro da estrutura cerebral. Esse modelo de organização cerebral e mental permite ao homem processar as informações oriundas do mundo exterior e desenvolver fenômenos específicos (percepção, memória, imaginação, pensamento). O conjunto desses fenômenos psicológicos, mentais, seria a consciência (ou mentalidade).

Desse modo, o que tem desenvolvido uma estrutura mais complexa no ser humano é a consciência. Nesse sentido, a mudança das condições sociais ocorre a partir da evolução da própria consciência, resultante da interação mútua que o mundo interno desses seres mantém com a realidade externa. O mundo da consciência confere maior liberdade de escolha e autonomia ao ser humano, aumentando-lhe as opções para garantir sua existência nos momentos de instabilidade e perturbação, por intermédio de mecanismos mais aperfeiçoados de retroalimentação negativa.

Assim, a consciência confere ao ser humano mecanismos mais eficazes para desviar-se do processo de entropia. Outra diferença de organização entre os seres humanos e os diferentes componentes da natureza está na inversão de escala do processo de organização. Assim, o sistema natural estrutura-se em nível planetário, a exemplo dos elementos meteorológicos globais que se conjugam para determinar as condições do tempo em um dado lugar; pelo viés oposto, a estruturação da ordem interna dos seres humanos ocorre a partir das escalas inferiores para as mais abrangentes, das estruturas mais simples para as mais complexas. Portanto, em cada momento dessa “escalada no processo de organização”, a humanidade parece passa por diferentes estágios de consciência a respeito de si em sua relação com o cosmos, com os outros seres humanos, assim como da percepção do espaço e do tempo.

A MENTE E A CONSCIÊNCIA
Atualmente, essa nova compreensão da vida, sobre a qual estamos discorrendo, levou a uma das mais importantes conseqüências na filosofia: a concepção inaudita da natureza da mente e da consciência que superou o dualismo cartesiano entre mente e matéria. Muito embora ainda todos concordem que a mente tem algo (muito!) a ver com o cérebro, ainda não há consenso generalizado quanto à natureza exata dessa relação.

O grande avanço representado para o conhecimento evolutivo do ser humano foi o de perceber que a mente e a consciência são processos e não a visão de Descartes, mantida até as novas descobertas, que relegava a mente ao lugar de "coisa pensante" (res cogitans). O despertar desse novo pensamento foi desenvolvido na década de 1960 por Gregory Bateson, que cunhou o termo "processo mental". Carillo vem ampliar ainda mais esse conceito ao inferir que a própria atividade de organização de todos os sistemas vivos e as interações destes organismos com o seu ambiente também é cognitiva. De onde podemos concluir que a vida e a cognição estão ligadas definitivamente e a atividade mental é imanente à matéria em todos os níveis de vida.

Sem depender necessariamente apenas de um cérebro e de sistema nervoso conclui-se que sob esta teoria a cognição, percepção, emoções e comportamento envolvem, assim, todo o processo da vida.

Para melhor compreendermos esse conceito convém salientar que todo o sistema sofre mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo em que conserva o seu padrão de organização em teia. Nesta rede os componentes produzem e se transformam uns aos outros, de duas maneiras distintas:
a) Auto-renovação. Os organismos vivos constroem sempre com a divisão das suas células; em seguida constroem estruturas, na medida em que seus tecidos e órgãos substituem suas células contínua e ciclicamente, eles conservam a sua identidade global, seu padrão de organização.
b) Criação de novas estruturas. São as novas conexões da rede auto-influenciadas pelo ambiente ou pela dinâmica interna do sistema. O sistema vivo se liga estruturalmente ao seu ambiente, através de interações recorrentes, cada uma das quais desencadeia mudanças estruturais no sistema. O sistema nervoso de um organismo muda o seu padrão de ligações nervosas a cada novo estímulo sensorial. Os sistemas vivos são ao mesmo tempo autônomos e dependentes e o ambiente, embora desencadeie possíveis mudanças estruturais, não as especifica e nem as dirige autonomamente.

Quando um organismo vivo muda suas estruturas para responder às influências ambientais, esta mutação altera o seu porvir e ele aprende. Interagindo com o ambiente, o organismo vivo, com o tempo, constrói a sua história e a sua estrutura viva é o próprio registro dos desenvolvimentos que alcançou, é o seu registro das mudanças estruturais anteriores. Seguindo estas reflexões podemos concluir que se cada mudança estrutural influencia o seu futuro, assim também o comportamento do organismo vivo é determinado pela sua estrutura. O organismo vivo é, ao mesmo tempo, determinado e livre.

Mente e cérebro, processo e estrutura estão relacionados. A cognição não opera só através do cérebro, toda a estrutura do organismo faz parte deste processo independendo de se este organismo tenha um cérebro e um sistema nervoso superior ou não.

Segundo Carillo a cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência, sendo esta a experiência vivida e manifestada em certos graus de complexidade cognitiva exigindo não apenas a presença de um cérebro e de um sistema nervoso superior, ou seja, estamos diante da noção de "consciência como sendo um processo" resultante da interdependência da mente e do corpo.
O problema central de uma ciência da consciência seria, então, o de explicar a experiência subjetiva associada aos acontecimentos cognitivos, ou em outras palavras, para explicar a experiência consciente precisamos de um “elemento extra” na explicação: uma meta-consciência.

Para compreendermos a consciência e para que a ciência da consciência seja formulada corretamente, necessitamos compreender melhor a natureza dos fenômenos subjetivos (ou análise da experiência viva), sem os quais o estudo da ciência da consciência jamais estará completo. Este estudo exige, a nosso ver, metodologia nova e profunda que poucos cientistas ainda não se resolveram a empreender. Neste ponto, encontraremos verdadeiramente "o erro de Descartes" que o filósofo nos legou como herança. A divisão cartesiana entre mente e matéria, “o eu e o outro”, levou a humanidade a acreditar piamente que o mundo poderia ser descrito objetivamente e este se transformou no ideal científico vigente até hoje, mesmo com o advento da física quântica e o estudo dos fenômenos atômicos. A Teoria de Carillo representa uma ajuda e tanto nesta mudança necessária de paradigma, pois deixa claro que a cognição não é a representação do mundo, mundo independente de nós mesmos e sim a produção de um mundo decorrente do processo de viver.

O PADRÃO DE ORGANIZAÇÃO
“Onde quer que encontremos sistemas vivos – organismos, partes de organismos ou comunidades de organismos – podemos observar que seus componentes estão arranjados à maneira de rede. Sempre que olhamos para a vida, olhamos para redes. (...) O padrão da vida, poderíamos dizer, é um padrão de rede capaz de auto-organização.” (Fritjof Capra – “A Teia da Vida”)

Todo sistema vivo é constituído por uma arquitetura plástica, não-linear, aberta, descentralizada, plural, dinâmica, horizontal e capaz de auto-regulação. É uma forma de organização caracterizada fundamentalmente pela sua horizontalidade, isto é, pelo modo de inter-relacionar os elementos sem hierarquia.

O conceito de organização tem a ver com "ordem" e não com hierarquia: é o processo de ordenar um conjunto de elementos em razão de um objetivo ou finalidade. Hierarquia tem a ver com controle, governo, poder de decisão. Uma organização sem hierarquia seria, nesta acepção, um processo no qual um conjunto de elementos estaria ordenado sem a mediação de qualquer controle ou governo. Esta definição parece um contra-senso, para nós acostumados a uma noção de ordem associada a controle e comando. Mas, como bem demonstrou Fritjof Capra (na esteira das contribuições de Ilya Prigogine, Benoît Mandelbrot, Humberto Maturana e Francisco Varela, entre outros), é nessa "ordem sem governo" que se baseia o padrão de organização de todos os sistemas vivos. Ordem que, convenhamos, parece funcionar muito bem.

Essa ordem é produzida por uma dinâmica de auto-ajuste recíproco entre cada um dos elementos que compõem o sistema, em função de “laços de realimentação”. Os elementos da organização se ajustam uns aos outros, em função de seus erros e acertos, até o estabelecimento de um modo coordenado de funcionamento. É um processo de intenso movimento e rearranjo. Não há um controle central em tal dinâmica, isto é, não é um ou outro dos elementos que comanda o grupo, dizendo "assim está bom, assim não está bom". A organização emerge das relações entre os elementos. Trata-se, portanto, de um processo de auto-organização. Nunca o termo "coordenação" foi tão bem empregado. Nos sistemas vivos, a ordem é uma co-produção de todos.

Quando se pensa em organização é muito comum associar essa idéia a um jeito "certo" de dispor os elementos, a uma ordem finalística. Um sistema organizado seria, nessa acepção, aquele que encontrou a sua maneira correta de funcionar. Mas nos sistemas vivos, que são frutos da auto-regulação, das idas e vindas, de arranjos e ajustes recíprocos, a organização é sempre um processo, nunca um estado final. No momento em que encontrou uma "maneira correta de funcionar", o sistema depara-se com uma outra maneira correta e, mais adiante, com uma outra, uma outra e outra ainda. O sistema fica organizado, isto é, em permanente processo de organização, quando e porque está em movimento. Sua ordem é móvel e instável. Nesse sentido o termo "organização" deve ser entendido sempre como uma ação de organizar, uma ação de criação de ordem, nunca como um resultado pronto e acabado.

Outra característica acentuada dos sistemas vivos e de sua arquitetura tipo “rede” é a velocidade com que flui a informação e a qualidade de como ela flui. As propriedades da morfologia dão pistas de como esse fluxo ocorre: de forma não-linear, para todos os lados; em ondas de propagação não controlada; e produzindo novidade (isto é, formas novas) por onde passa. O processo de auto-regulação, presente em seu âmbito, produzido por laços de realimentação, é um fenômeno que pode ser interpretado perfeitamente como um fenômeno de comunicação. A informação é, por assim dizer, um grande “alimento” da rede. Ocupa um lugar central na sua dinâmica organizacional tal qual a linguagem nas sociedades humanas. Sua função, mais do que de transportar significados de um lugar a outro, é a de organizar os padrões de ação do sistema. A comunicação, assim como na dinâmica social, é absolutamente “estruturante”.

RESGATANDO A HOMEOPATIA
“O inegável avanço da Homeopatia nas mais diversas áreas biológicas está fundamentado em alguns pilares de importância para o desenvolvimento e estabelecimento de qualquer proposta científica, sendo o amadurecimento da época um dos seus principais sustentáculos. O inconsciente ou consciente coletivo aponta os caminhos para a humanidade, baseando-se na experiência de sucessos e insucessos. A visão emergente da ciência sobre a síntese do ser biológico como algo a mais do que a simples soma de suas partes mostra-se em ampla ressonância, por exemplo, com teorias já aceitas pela física com relação às partículas subatômicas.

Muito embora os instrumentos para a edificação de uma abordagem terapêutica condizente com as atuais expectativas de uma visão sistemológica do ser biológico estejam alojados no cerne da Homeopatia, esta ainda se encontra, de certa forma, fragmentada em diversos aspectos, além de pouco atualizada frente aos avanços de algumas áreas da ciência perfeitamente adaptáveis a ela.

Enfoques restritos, mesmo que justificados por resultados positivos e de inegável valor na construção do saber homeopático, não resistem a uma visão crítica mais abrangente, calcada no progresso filosófico-científico que atualmente se descortina. Tomando apenas como exemplo, da mesma forma que os ditos organicistas, cuja prescrição se baseia numa restrição analítica, demonstram chegar a bons resultados terapêuticos, os chamados mentalistas, fundamentados numa abordagem exclusivamente psicossomática e psicanalítica, também o fazem.

Ambos, a seu modo, embora sejam agentes importantes na luta pelo alívio dos sofrimentos da humanidade e na construção do saber homeopático, apresentam abordagens reducionistas frente à complexidade do processo organizacional inerente ao ser vivo. Em outras palavras, a contemplação da mesma paisagem por janelas diferentes resulta em visões diversas, muito embora todas sejam igualmente verdadeiras.

Pouco ou nenhum esforço foi necessário para transformar a complexidade da teoria em instrumento de utilização relativamente fácil, uma vez que sua construção baseou-se, o mais rigorosamente possível, no pragmatismo. Evidentemente, alguns conceitos considerados como indiscutivelmente verdadeiros pelos homeopatas atuais tiveram que ser revistos e modificados dentro da nova estrutura de raciocínio, sem trazer nenhum prejuízo aos paradigmas por eles mesmos adotados.” (Romeu Carillo Junior – “A Homeopatia na Vanguarda do Contexto Científico Emergente” – Texto)

Se a Teoria Construtiva Homeopática de Hahnemann alicerçava-se no conceito central de Princípio ou Força Vital, de frágil sustentação, em especial após toda a transformação ocorrida no cerne da própria conceituação da ciência; se o caminho trilhado por grande parte de conceituados pesquisadores em Homeopatia aprofundou inexoravelmente essa fragilidade, levando-a, inclusive, a níveis de proposição absolutamente metafísicos (o que contraria a proposta hahnemanniana em sua essência), só podemos enxergar a Teoria de Carillo como a forma mais acabada de um resgate de contemporaneidade em sua mais completa acepção.

Se para Hahnemann:
“A afecção do dinamismo (força vital) de natureza como-espírito, que anima nosso corpo no interior invisível, morbidamente perturbado, bem como todos os sintomas exteriormente observáveis por ele produzidos no organismo, e que representam o mal existente, constituem um todo, um e o mesmo. O organismo é, na verdade, o instrumento material da vida, não sendo, porém, concebível sem a animação que lhe é dada pelo dinamismo instintivamente perceptor e regularizador, tanto quanto a força vital não é concebível sem o organismo, conseqüentemente, os dois juntos constituem em uma unidade, embora em pensamento, nossas mentes separem essa unidade em dois conceitos distintos para mais fácil compreensão.” (Hahnemann – “Organon” – Parágrafo 15).

Conceito reforçado em:
“Quando eu chamo doença uma disposição ou uma perturbação do estado de saúde do indivíduo, estou longe de querer dar uma explicação hiperfísica da natureza interna das doenças em geral, ou de cada doença em particular. Com essa expressão quero significar que as doenças não são evidentemente, nem podem ser, perturbações mecânicas ou químicas da substância material do corpo físico, que elas não dependem de um agente patogênico material, mas são alterações dinâmicas e de natureza como-espírito da vida.” (Hahnemann – “Organon” – Parágrafo 31 Nota).

Fica evidente o impasse, no cerne da própria construtividade dessa teoria: rejeita-se a fundamentação metafísica ao mesmo tempo em que “estaciona-se” por sobre ela. Como voltar a se movimentar?

“ ... A forma biológica reflete muito mais do que uma configuração estática, constituindo-se, na verdade, num padrão estrutural em constante evolução, influenciado pelo fluxo de matéria e energia que o percorre incessantemente... Em resumo, a nova teoria está calcada numa concepção de doença imaterial e do ser vivo como complexo, organizado e sistêmico, o que, necessariamente, implica na existência de uma estrutura física, que deve ser igualmente considerada. Ainda com relação à doença, esta não é vista como um mal em si, mas como um movimento do organismo no sentido de retornar ao estado de equilíbrio perdido, sem deixar de considerar as possibilidades de provocar lesões orgânicas ou mesmo a morte. Tratar homeopaticamente, portanto, é auxiliar o processo, tornando-o mais rápido, suave e eficaz.” (Romeu Carillo Junior – “A Homeopatia na Vanguarda do Contexto Científico Emergente” – Texto)

Assim a chave do resgate, o conceito que pode se “efetivar” no núcleo rígido da nova abordagem da teoria construtiva da Homeopatia, encontra-se representado em si mesmo, ao definir a doença como “ a instabilidade do processo vital, que pode resultar no seu aniquilamento, deterioração ou adaptação” (Carillo), instabilidade esta vista como o movimento característico da própria vida. A doença não caracterizada como um “mal em si mesmo” (pecado, destino, sortilégio, maldição, culpa, perda do paraíso, degeneração moral ... quantas coisas já foram escritas!) mas sim o caminho escolhido pelo organismo, o próprio movimento em busca, em direção à cura, característica essencial de todo o complexo processo vital.

Compreender esse movimento (que constitui a própria doença) é o primeiro passo para a consecução do processo de cura. Entender o processo adaptativo que decorre da doença, abarcar os padrões de organização como coadjuvantes, interdependentes e influenciados pela instabilidade (influências essas tanto mais importantes quanto maiores forem os objetivos comuns); determinar as causas das instabilidades, as suas origens, “...observar que sintomas e entidades clínicas semelhantes podem ser produzidas por desarranjos orgânicos diferentes e, além do mais, por causalidades intrínsecas e extrínsecas diversas. Muitas vezes, em situações crônicas, os sintomas e diagnósticos estão intrincados e pertencem a mecanismos fisiopatológicos diversos. Saber separá-los e agrupá-los é o primeiro passo para a solução do caso. Ou seja, determinar a ou as doenças crônicas, miasmas, ou melhor, diáteses, que se escondem por detrás dos sintomas ou diagnósticos clínicos.” (Carillo).

Força ou Processo Vital? Não temos dúvidas: Et Facta Est Lux.

Hahnemann - A Medicina e o Científico

Sobre alguns dados biográficos de Samuel Hahnemann estaremos nos fundamentando no belo trabalho da dra. Maisa Lemos Homem de Mello (“Vida e Obra de Samuel Hahnemann – o fundador da Homeopatia”) através de trechos escritos do próprio Hahnemann, refletindo diferentes momentos da sua vida.


Sobre sua formação:
Nasci em 10 de Abril de 1755, em Meissen uma cidade encantadora, situada na foz do Meissa e do Elba, no eleitorado da Saxonia, uma das mais bonitas regiões da Alemanha. É uma das razões do meu grande amor pelas maravilhas da natureza..........”

“Nunca me esqueci de dar ao meu corpo, através do exercício, do movimento e do ar fresco, a alegria e a resistência graças às quais a contínua tensão do espírito se mantém facilmente.”

“Meu pai, Christian, junto com minha mãe Johanna, ensinaram-me a ler e escrever quase como se fosse uma brincadeira. Meu pai embora não fosse um sábio em ciências - era decorador na manufatura de porcelana da cidade - tinha descoberto por si só o que era bom e proveitoso para o homem. Incutiu suas idéias em mim: viver e atuar sem pretensão nem ostentação. Estava sempre presente quando algo bom ia ser feito. Como poderia eu não seguir seus passos? Soube sempre distinguir entre o bem e o mal... Foi meu mestre....Eis aqui definido o verdadeiro fundamento da minha conduta moral.” 

Sobre sua primeira tese, “A maravilhosa conformação da mão humana”, de 1775:

“O homem dotado da inteligência que concebe - homo sapiens - e da mão que executa   - homo faber - deve estar a serviço da bondade do Criador para espalhar suas graças!”

Sobre sua “intuição criativa” (1789/1796)

“Se estou convencido de que meu doente está verdadeiramente melhor sem esses medicamentos... que Deus me ajude! Como poderia eu exercer assim a medicina. Não posso continuar a ser o carrasco dos meus irmãos.”

Os remédios só podem curar doenças análogas àquelas que eles próprios podem produzir”

Sobre a interpretação materialista de Cullen (as p
ropriedades adstringentes e amargas da China provocam a liberação de substância antitérmica – uma visão de oposição, linear e newtoniana) Hahnemann sobrepõe a sua interpretação (a China cura a febre por produzir sintomas semelhantes a ela – visão de não oposição, circular, centro-periférica e fisiológica):

“....A título experimental tomei durante vários dias, duas vezes ao dia, quatro dracmas de pó de quinquina. Os meus pés e a ponta dos meus dedos ficaram frios. Senti-me fraco e sonolento. Em seguida, meu ritmo cardíaco acelerou. Meu pulso tornou-se rápido e nervoso. Intolerável ansiedade, tremores mas sem rigidez, prostração em todos os membros, depois pulsações na cabeça, no coração, nas bochechas, sede. Em suma, todos os sintomas habitualmente associados à febre intermitente. A crise aguda durou de 2 a 3 horas e repetiu-se a cada ingestão da droga.”.....O cortex de quinquina que é utilizado como remédio para a febre intermitente atua porque é capaz de produzir sintomas semelhantes aos da febre intermitente num homem de boa saúde.”   

Sobre o seu novo princípio de cura (1796/1804):
                                                 

“Para encontrar as verdadeiras propriedades medicinais de uma substância nas afecções crônicas, é preciso volver a atenção para a doença artificial específica que esta substância provoca normalmente no organismo, a fim de usá-la no estado patológico análogo que interessa afastar.”.....”Para curar radicalmente certas afecções crônicas, é preciso procurar os remédios que normalmente provocam no organismo uma doença análoga e o mais análoga possível.”  

“Três crianças de uma mesma família foram vítimas de um ataque pernicioso de febre escarlatina. A filha mais velha, que tinha tomado Belladonna por via interna para uma afecção das articulações dos dedos, foi para minha surpresa, a única a escapar ao contágio, embora normalmente fosse a primeira a adoecer . Não hesitei então em dar às outras crianças dessa família numerosa uma dose muito pequena de Belladonna a título preventivo. Repeti a dose 3 dias depois. Nenhuma das crianças apanhou a doença, apesar do contacto com outros contaminados.”

Sobre a revolução homeopática (1804/1811):   

“Será que é mesmo possível acreditar que, no nosso século de Luz, uma obra fundamentada unicamente na experiência, como é o meu Organon da Medicina Racional, seja posta de lado pelas palavras sem sentido da velha escola, enquanto que somente contra-experiências e contra-experimentações a poderiam confirmar ou refutar?”

“A antiga medicina ou Alopatia,....,supõe sempre no tratamento das enfermidades, uma superabundância de sangue (pletora) que jamais existe, outras vezes acrimonias ou matérias mórbidas. Portanto retira o sangue necessário à vida por sangrias e pretende varrer a suposta matéria morbífica ou atraí-la a outro ponto por meio de vomitivos, purgantes, sialagogos, diuréticos, vesicatórios, cautérios, etc. Tenta com isso  diminuir a enfermidade e destruí-la materialmente....”

Sobre a oposição que sofreu em Leipzig (1811/1821):   

“Quando proponho uma substância para ser experimentada, asseguro-me de que não possa representar nenhum risco ao experimentador. Junte ....um pouco de tintura de Helleborus niger que eu próprio preparei.....Misture 1 gota desta tintura em 8 colheres de água e junte alcool para que a mistura se conserve. Tome 1 colher desta mistura de manhã, em jejum, e depois a cada hora e meia, pelo tempo que puder fazê-lo, sem se sentir muito afetado. Se aparecerem sintomas demasiado incômodos, beba algumas gotas de Camphora em água”.   

Poderíamos ficar muito tempo a passar em revista dados relativos à biografia de Hahnemann, mas este não é o nosso objetivo. Nesse ponto julgamos necessário tecer alguns comentários sobre a trajetória filosófica de Hahnemann, como estudioso atento que foi dos principais pensadores, desde Descartes e a fundação do racionalismo, passando pelo empirismo de Hume e “desaguando” na grande síntese levada a efeito por Kant.

Em uma das muitas correspondências entre Von Villers e Hahnemann, Haehl cita o seguinte trecho: “Eu admiro muito Kant, particularmente porque ele traçou as linhas da filosofia e de todo o conhecimento humano, quando a experiência termina” (grifo nosso). Hahnemann demonstra a sua grande admiração pela filosofia kantiana e, a nosso ver, isso foi de vital importância no desenvolvimento do seu pensamento, particularmente no que se refere à superação do empírico, porém sem o despreza-lo.
  
A título de síntese nem precisaríamos dizer o quanto de cartesiano está contido na proposta homeopática (vamos nos servir de guia do “Organon da Arte de Curar”, pois acreditamos que nenhum outro livro expressa melhor os seus principais conceitos). O método é cartesiano, o cuidado com o desenvolvimento da compreensão dos passos necessários para a mais exata e possível abordagem dos casos também o é.

Cabe aqui um comentário: o modelo biomédico, ou alopático, como preferem outros, sempre se arvorou como primordialmente cartesiano; o que nos parece é que esse modelo privilegia o método analítico binário da tese e antítese sem se aperceber que o método cartesiano é, em essência, dialético, o que implicaria na síntese, que parece estar relegada a um outro (não diríamos segundo) plano.

Para o modelo biomédico a análise do parcial, desde que levada a extremos de exatidão, controle, reprodutividade, e outros conceitos semelhantes, é o único caminho que conduz ao conhecimento científico (esse rim que eu vejo, esse coração, esse pulmão, me são totalmente conhecidos posto que perscrutados e analisados com a maior exatidão e melhor técnica possível ... e o Homem morre de parada cardio-respiratória ... afinal, do que morremos todos!). Para nós isso faz parte do reducionismo científico predominante nos dias atuais em muitos círculos da medicina.

Em segundo lugar (e esse tema será melhor abordado mais adiante) Hahnemann parece concordar com Hume quando esse se refere à impossibilidade de se construir  algo que se pretenda científico e racional partindo apenas de uma raiz metafísica, precedente e fundadora desse conhecimento, como Descartes queria. Porém, ao contrário de Hume, Hahnemann acreditava que as coisas (as substâncias) eram possuidoras de uma “essência”, assim como as idéias (ou coisas correspondentes) não se reduziriam a um mero composto de idéias (ou coisas) cada vez mais simples, levando a nada, afinal.

Se para Hume não haveria uma relação necessária, por exemplo, de causa e efeito entre as coisas, para Hahnemann esse era o ponto fundamental. Porém, e isso nos parece brilhante, ele “concorda” com Hume no que diz respeito à demonstração dos fatos, afigurando-se essa demonstração impossível fora do âmbito da experimentação (prescindindo, nesse ponto, portanto, de uma fundamentação apenas puramente lógica). A palavra “apenas” é de enorme importância, pois jamais Hahnemann desprezará a fundamentação lógica; o que ele enfatiza é a precedência da experimentação.

E finalmente, como Kant (do qual Hahnemann foi um atento leitor, como já dissemos), as coisas (ou substâncias) são vistas por Hahnemann como essências à espera de sua descoberta, ou, melhor dizendo, do desvelamento de suas propriedades inerentes. Mas sua postura é também idealista, pois ao mesmo tempo em que as coisas estariam apenas “disponíveis” na natureza, na medida em que “são tocadas” pelo Homem elas passam a revelar as suas próprias dimensões no caminho do desvelamento, ou melhor, no caminho do conhecimento que propicia o entendimento da cura. A posição hahnemaniana, como dialética que é, representa a razão como fonte do conhecimento (posição diríamos racionalista), porém sustentada pela experimentação (posição empírica) através da qual o seu sentido racional se concretiza.

Nesse ponto acreditamos que já podemos expor a nossa idéia, deixada em suspenso no artigo precedente (“Paracelso – A Medicina e o Metafísico”), acerca da “omissão”, nos textos hahnemanianos, de qualquer citação a respeito do pensamento de Paracelso. Gaston Bachelard, filósofo da ciência, em seu livro “A Epistemologia” nos oferece uma “pista” ao propor a idéia de que a Alquimia jamais poderia se transformar em química (vale dizer, se transformar em ciência) a não ser por uma “superação” do que ele denomina obstáculo epistemológico (e que outros filósofos da ciência preferem denominar diferenças de paradigmas e que nós, numa leitura foucaultiana, preferimos chamar de impossibilidade delimitada do conhecimento).
“O alquimista pretendia que sua “ciência” fosse difícil e rara. Pretendia resolver um grande problema: penetrar no Grande Mistério. Descobrir a Palavra do Enigma ter-lhe-ia dado a onipotência sobre o mundo” (Bachelard – “A Epistemologia” )

Segundo Bachelard, “descobrir a palavra do enigma” seria penetrar, sozinho e incomunicável, nos recessos secretos das substâncias, pois as suas propriedades apenas se “desvelariam” a quem “pudesse” enxerga-las (Paracelso: “enxergar o invisível no visível”). Era o reino da impenetrabilidade, o qual a química, enquanto ciência, procuraria analisar e resolver. Eis a grande questão: Hahnemann, enquanto um pensador essencialmente científico, jamais poderia pensar como Paracelso (impossibilidade de conhecer como Paracelso, não por menor capacidade intelectual, mas por impossibilidade epistemológica de pensar); ademais, a ciência pressupõe a universalização do conhecimento, ao contrário da proposta alquímica de se perscrutar a natureza silenciosamente em busca dos seus mistérios. Hahnemann também quer apreender o invisível que se “esconde” por detrás do visível. Mas ele procurará isso com o método racional, sustentado por observações empíricas, delimitando o que se procura, porém permitindo que outros, como ele, também possam entender como tudo ademais funciona.

A busca pelo “símile” em Hahnemann é uma busca científica (o nome da primeira versão do Organon, publicada em 1810 era “Organon da Ciência Médica Racional” que, a partir de 1819 passaria a se denominar “Organon da Arte de Curar”). O “símile” em Paracelso é o que poderíamos denominar uma “Teoria das Assinaturas” ... o invisível (poder curativo) se “manifestando” como que imprimindo, através do visível (substância medicamentosa) a sua marca, que deve ser capturada pelo olhar atento e “iniciado” de quem a procura. Hahnemann acrescenta a isso: pelo caminho da razão, inerente a todo e qualquer ser humano, caminho esse que exige estar armado com o instrumental próprio da razão e não mais do que isso. Afinal, a Homeopatia, vista por Hahnemann, como ruptura em relação a aquilo que se definia em sua época como ciência, deveria ser um conhecimento racional e para todos.

“§ 3 - Se o médico percebe claramente o que há para ser curado nas doenças, isto é, em cada caso individual de doença (conhecimento da doença, indicação),  se ele claramente percebe o que é curativo nos medicamentos, isto é, em cada medicamento em particular (conhecimento das virtudes medicinais), e se sabe adaptar, de acordo com princípios bem definidos, o que é curativo nos medicamentos, ao que considerou indubitavelmente patológico no paciente, de tal maneira que a cura deva sobrevir; se sabe adapta-lo  tanto a respeito da conveniência do medicamento mais apropriado quanto ao seu modo de ação no caso de que se trata (escolha do remédio, medicamento indicado), como a respeito da maneira exata da sua preparação e quantidade (dose certa), e do período apropriado de sua repetição; se, finalmente, conhece os obstáculos ao restabelecimento em cada caso, e sabe remove-los de modo que a cura seja durável, então ele saberá agir de maneira racional e profunda, e então ele será um verdadeiro médico.” (Hahnemann – “Organon da Arte de Curar”)

E Hahnemann é ainda mais enfático:
“§ 6 – O observador  sem preconceitos – sabendo da futilidade de argumentações metafísicas, que a experiência não pode confirmar – nada percebe, mesmo sendo o mais arguto, em qualquer doença individual, senão alterações reconhecíveis externamente pelos sentidos do corpo e da alma, sinais mórbidos, acidentes, sintomas, isto é, perturbações do antigo estado são do atual doente, os quais este mesmo sente, as pessoas do seu ambiente percebem e o próprio médico nele observa. Todos esses sinais perceptíveis representam a doença em toda a sua extensão, isto é, formam, juntos, o quadro verdadeiro e único que se pode imaginar da doença.”  (Hahnemann – “Organon da Arte de Curar”)

Na nota que se segue a esse aforismo, Hahnemann deixa mais evidente ainda, a nosso ver, sua posição, digamos “kantiana” de, na esfera da Razão Pura, abdicar da tentativa de se “penetrar” na essencialidade da própria doença, reconhecendo nela (a doença em sí), no entanto, o a priori fundamental para a compreensão da doença mesma.

“Nas doenças, o que se manifesta aos sentidos pelos sintomas não é para o médico a própria doença, visto que ele nunca pode ver a doença latente, o ser imaterial que produz a doença, a força vital? Nem é necessário que ele a veja, mas somente os seus efeitos mórbidos, para assim poder curar a doença. Que mais pretende a velha escola procurar no interior recôndito do organismo como prima causa morbi, enquanto que rejeita, como objeto de cura, e desdenha, com falso orgulho, a representação sensível e óbvia da doença, os sintomas que se nos apresentam tão claramente? Que mais ele quer curar nas doenças senão isso?  (Hahnemann – “Organon da Arte de Curar”)

Entretanto o status de ciência que Hahnemann ambicionou ao criar a Homeopatia pouco tem a ver com uma visão, digamos positivista e puramente analítica dos fatos e, portanto, muitas vezes reducionista e parcial das coisas, ou seja a proposta hahnemaniana, vista como uma proposta dialética, vitalista e totalizante,  a aproxima do que poderíamos chamar de medicina sintética, aos moldes da medicina hipocrática, agora fundamentada pelos preceitos da razão. Daí, a nosso ver, a mudança do título de sua principal obra: de “Organon da Ciência Médica Racional” para “Organon da Arte de Curar”. A mudança parece sutil, mas envolve um diferencial que, ainda hoje, serve de base para todos os ataques que a Homeopatia sofre da ciência biomédica predominante. Essa diferença sutil diz respeito a aquilo que a “fria” observância do método homeopático isoladamente não consegue revelar e que nós poderíamos chamar de uma visão generalizante associada a uma estreita parceria entre médico e paciente na busca do equilíbrio para o processo de cura, o que envolveria grandes doses de intuição e saber, portanto arte.

Cabe agora discutirmos, e esse é o nosso objetivo primordial agora, o caráter científico da Teoria Homeopática à luz das proposições atuais da filosofia da ciência e, para tanto julgamos necessário tecer alguns comentários acerca das duas abordagens predominantes que, como veremos, nada tem a ver com a estéril discussão entre “unicistas”, “pluralistas”, “complexistas”, etc... Para tanto, nos utilizaremos intensivamente do excelente texto “A Questão da Cientificidade da Homeopatia”, do filósofo e professor da Unicamp, Silvio Seno Chibeni.

 A distinção mais importante para o estudo epistemológico das teorias científicas é aquela que ocorre entre as chamadas teorias construtivas e as teorias fenomenológicas. Essa diferenciação diz respeito não apenas à natureza das proposições da teoria, mas também ao tipo de explicação que elas fornecem para os fenômenos.

Classificam-se como Teorias Fenomenológicas aquelas cujas proposições se refiram exclusivamente a propriedades e relações empiricamente acessíveis entre os fenômenos. Essas proposições descrevem, conectam e integram os fenômenos, permitindo a dedução de conseqüências empiricamente observáveis. Exemplos importantes de teorias fenomenológicas são a termodinâmica, a teoria da relatividade especial e a teoria da seleção natural de Darwin.

Em contraste com as teorias fenomenológicas, as Teorias Construtivas envolvem proposições referentes a “sistemas” e processos inacessíveis à observação direta, que são postulados com o objetivo de explicar os fenômenos por sua “construção” a partir dessa suposta estrutura fundamental subjacente. Exemplos característicos desse tipo de teoria são a mecânica quântica, a mecânica estatística, o eletromagnetismo e a genética molecular.
É importante observar que essas duas categorias de teoria não são conflitantes, no sentido de que é possível que um mesmo conjunto de fenômenos seja tratado por duas teorias, uma fenomenológica e outra construtiva; nesse caso, a última vai além da primeira no nível explicativo, desse modo complementando-a.

Hahnemann dispõe, no “Organon”, esses dois enfoques, ou seja, ele desenvolve a sua proposta homeopática em termos fenomenológicos e construtivos, este último tendo como conceito central o de princípio ou força vital.

Em nossa leitura do “Organon”, como já mencionamos anteriormente, chamou-nos a atenção a ênfase com que Hahnemann defende, em muitas ocasiões, a precedência e mesmo a suficiência de uma abordagem puramente fenomenológica dos processos patológicos e terapêuticos. Associamos, como visto anteriormente, tal postura à vertente empirista da filosofia, em especial ao empirismo cético de David Hume, vertente essa que se fez acompanhar, desde o início, por crescente aversão às especulações metafísicas. Essa aversão é também identificável, explícita ou implicitamente, em todo o “Organon”, como também vimos através das citações que destacamos anteriormente.

Analisaremos mais à frente essa, a nosso ver, complexa postura de Hahnemann, marcada pela tensão entre uma posição puramente fenomenológica e a defesa de uma teoria como a do princípio vital. Focaremos por ora nosso exame aos princípios de natureza fenomenológica da homeopatia. Ressaltamos, porém, que essa desvinculação dos dois níveis teóricos da homeopatia não se encontra com clareza no “Organon” e que esse seja, talvez, o grande desafio deixado por Hahnemann para seus seguidores, qual seja uma resolução científica e consistente para esse impasse.

Entretanto, como também já salientamos, Hahnemann, também fortemente influenciado por Kant, embora tenha restringido o conhecimento (ao nível da Razão Pura) ao mundo dos fenômenos devidamente fundamentado pelas categorias a priori do conhecimento, havia deixado, para o nível da Razão Prática, o saber daquilo que estaria constituído através e além do fenomênico. No fundo é sobre essa dicotomia que estamos falando quando classificamos uma teoria como Fenomenológica ou Construtiva.

Enquanto restritos à “porção” fenomenológica da Homeopatia, portanto, sem levar em conta a proposta hahnemaniana de defesa de uma teoria como a do princípio vital, que notoriamente extrapola o nível empírico, poderíamos esquematizar, como faz Chibeni, a partir do modelo de programa científico, proposto pelo filósofo da ciência Imre Lakatos, os princípios homeopáticos: onde o Núcleo Rígido representa a essência do programa homeopático desenvolvido em torno de sua lei fundamental (a chamada Lei da Cura), e o seu Cinturão protetor consistindo de diversas leis auxiliares, expostas de modo claro no Organon, com um caráter mais ou menos fundamental, dependendo do enfoque dado por cada analista em particular.

Devemos ainda observar que a fronteira entre as leis do núcleo e as do cinturão não é absoluta ou completamente nítida. Assim, ao longo do desenvolvimento do programa certas leis que no princípio podem ser consideradas como secundárias, eventualmente podem mostrar-se mais fundamentais, ou vice-versa. Notemos, por fim, que todos os princípios enumerados são de ordem fenomenológica.

Acreditamos que não seja relevante nem necessário fundamentarmos os conceitos, expostos no esquema acima, através de citações contidas no “Organon”, pois essa nos parece ser a parte menos controversa da homeopatia, razoavelmente aceita sem grandes discussões entre os pesquisadores e cientistas que a analisam. Na parte seguinte de nosso ensaio passaremos a discutir os conceitos mais polêmicos, quais sejam aqueles que se encontram interligados com a “porção construtiva” da proposta hahnemaniana.

Nossa primeira impressão, como já salientado, dos aforismos contidos na seção 5 do “Organon” parece sugerir que a postura de Hahnemann diante da tarefa da elaboração de uma teoria homeopática construtiva oscilava entre um certo grau de desinteresse e, por vezes, até o desdém. Tal atitude parece-nos firmada em um certo ceticismo anti-realista, presente em boa parte do seu texto, já que as entidades e mecanismos envolvidos numa tal teoria, por princípio, escapariam à possibilidade de verificação empírica direta.
Evidentemente, o compromisso de Hahnemann com essa visão filosófica coloca-nos diante do difícil problema de entender por que ele próprio buscou elaborar uma teoria construtiva para a homeopatia, e isso na mesma época e nos mesmos textos em que tentou explicitar tal compromisso.

A análise dessa questão envolveria outro tipo de investigação, quer seja histórica, metodológica ou mesmo filosófica, o que fugiria ao escopo deste trabalho. Apenas mencionamos, a título de especulação, que parece haver uma ligação entre a crítica anti-realista de Hahnemann e seu enorme descontentamento com as teorias médicas de seu tempo, que de um modo ou de outro remetiam a entidades extra-sensíveis. Todavia, mesmo que essa sugerida ligação se possa de fato fundamentar, permanece sem explicação a tensão filosófica objetiva que constitui o cerne do problema em foco.

É importante notar, porém, que mesmo que se conclua pela impossibilidade de uma solução satisfatória para esse problema ¾ o que indicaria uma inconsistência filosófica no pensamento hahnemanniano  ¾  não ficaria por isso comprometida a consistência filosófica e a legitimidade científica das teorias homeopáticas assim desenvolvidas, tanto a fenomenológica como a construtiva. Conforme vimos anteriormente, não há nada errado, tanto do ponto de vista filosófico como do científico, em se defender ao mesmo tempo: a) a autonomia e a primazia de uma teoria puramente fenomenológica para um dado domínio do conhecimento; e b) a conveniência da complementação dessa teoria por uma teoria construtiva.

É evidente que Hahnemann, no entanto, manteve essas posições, e agiu de acordo com elas, muitas vezes em aparente contradição às suas próprias manifestações. Parece que estamos aqui diante de mais uma situação na qual se aplica a famosa regra historiográfica de Einstein, que recomenda que, se quisermos aprender algo sobre um determinado cientista não devemos examinar o que ele diz que faz, mas o que ele faz efetivamente.

A primeira e grande premissa da teoria construtiva hahnemaniana da homeopatia (o seu Núcleo Rígido) define-se, como já frisamos, através do conceito básico de força ou princípio vital. No Organon, a primeira menção da força vital ocorre na nota ao parágrafo 6. Paradoxalmente, é justamente neste parágrafo que o autor repudia as “especulações metafísicas” sobre os processos patológicos não apreendidos pelos sentidos, inclusive ressalvando que “a totalidade [dos] sinais perceptíveis representa a extensão completa da doença; em seu conjunto, constituem sua forma verdadeira, e única concebível”. Vem então a nota. Após o seu trecho inicial, surge esta afirmação:

“No que diz respeito ao médico, não é o que se revela aos sentidos como sintomas a doença ela mesma? Ele nunca pode ver o elemento imaterial, a força vital que causa a doença. Ele não precisa vê-la; para curar necessita apenas ver e entender seus efeitos mórbidos”.

Essa passagem é particularmente importante. Primeiro, a afirmação do parágrafo sobre a verdadeira e única forma concebível da doença como sendo constituída pelo conjunto dos sintomas é enfraquecida e relativizada ao “que diz respeito ao médico”. Essa é uma alteração fundamental. Depois, evoca-se uma entidade explicitamente dada como em princípio não-perceptível, para desempenhar um papel-chave na teoria médica, a saber o da causa das doenças. Como se sabe, tal entidade ¾ a força ou princípio vital  ¾ comparece, a partir desse parágrafo, em todo o restante do Organon, apesar da reiteração aqui e ali da crítica de que já tratamos.

Conforme podemos verificar nos parágrafos 9, 10 e 15, a força vital é entendida como aquilo que “dá vida” (10, 15), “anima” (9), “mantém” o organismo material humano (10); que “mantém as sensações e atividades do organismo em harmonia” (9); que desempenha um papel essencial na percepção e nas ações do corpo (10).

Essas funções, que Hahnemann atribui ao princípio vital, haviam sido, em diferentes fases da história da civilização ocidental, atribuídas à própria alma humana. Mas Hahnemann concebe a alma ou espírito como o ser pensante que habita o corpo (ver, por exemplo, o parágrafo 9), distinto, portanto, do princípio vital. Quando diz que o princípio vital não é material não se deve pois concluir ¾ como fariam os dualistas ¾ que é espiritual. Note-se que Hahnemann nunca faz tal inferência; o que ele diz é que o princípio vital é “como-espírito”, o que é diferente de ser espiritual.

Quanto à possibilidade do nosso conhecimento do princípio vital, Hahnemann mantém que se trata de algo inapreensível pelos sentidos, e que só se dá a conhecer “por seus efeitos sobre o organismo”. Com essa comparação Hahnemann se propõe a elucidar duas características fundamentais da força vital: a) Ela só se faz conhecer por seus efeitos; b) Ela não é uma ação material ou mecânica. Do ponto de vista da ciência médica, o que há de mais relevante no conceito de força vital é o seu papel na gênese e tratamento das enfermidades. Hahnemann situa a causa das doenças no desajuste ou desarmonia da força vital, conforme sugere o já citado trecho da nota ao parágrafo 6.

Quanto à terapia, Hahnemann mantém, coerentemente com sua visão das enfermidades, que o restabelecimento da saúde não pode ser alcançado senão por uma ação sobre a força vital desajustada. Ademais, tal ação tem de ser “dinâmica”, e não química, mecânica, material.
Assim, a força como-espírito das substâncias medicinais é “liberada” através do processo de potencialização, permanecendo de algum modo “retida” no medicamento. Ao entrar em contato com o organismo vivo, essa força age sobre a força vital que o anima, e sua ação se faz sentir em toda a sua extensão. No parágrafo 16, Hahnemann é mais específico, e diz que é o tecido nervoso em particular que “sente” a ação da força como-espírito do medicamento:
“O médico pode remover tais desajustes patológicos (doenças) somente agindo sobre a nossa força vital como-espírito com remédios que possuam efeitos igualmente dinâmicos, como-espírito, que sejam percebidos pela sensibilidade nervosa presente em todas as partes do organismo”.

Mais um princípio importante é exposto no parágrafo 17:
“A cura, que é a eliminação de todos os sinais e sintomas perceptíveis da doença, significa também a remoção das modificações internas da força vital que estão por detrás deles: desse modo a doença completa terá sido destruída. Conseqüentemente, o médico tem apenas que eliminar a totalidade dos sintomas para remover simultaneamente a alteração interna, o desajuste patológico do princípio vital, por esse meio removendo e aniquilando a própria doença”.

Esse princípio, segundo o qual a eliminação da totalidade dos sintomas significa a eliminação do distúrbio da força vital, parece decorrer da parte da teoria já firmada até aqui. Se não existem os efeitos, não existe a causa, pois se ela existisse, continuaria produzindo os efeitos. Note-se também que isso explica, dentro do contexto da teoria construtiva em análise, a própria possibilidade da ação do médico. Efetivamente, não tendo acesso direto à força vital por nenhum meio racional ou empírico, o médico nunca seria capaz de atuar sobre ela para promover o seu reajuste se não lhe bastasse para tanto descobrir empiricamente, e empregar, os meios que levam à erradicação dos sintomas, efeitos do seu desajuste.
Finalmente devemos citar a importante e intrigante explicação proposta por Hahnemann de como os remédios operam a cura, ou seja, de como funciona a lei básica do núcleo fenomenológico da homeopatia. Essa explicação encontra-se exposta nos parágrafos 29, 34, 45, 69, 148 e 155, entre outros.

Não podemos deixar de observar que, antes de iniciar a exposição dessa explicação, Hahnemann adverte, no princípio do parágrafo 28 que esse tipo de explicação é “de pouca importância”, e que ele vê “pouco valor em tentar alguma”. É ainda digno de nota que imediatamente após essas palavras Hahnemann acrescente: “No entanto, a [explicação] que se vai seguir mostra-se como a mais provável, porque se funda na experiência”. Ora, como a explicação proposta envolve incursões extensas além do nível empírico, deve-se entender essa assertiva de Hahnemann apenas no sentido de que a teoria formulada é empiricamente adequada, ou seja, dá conta dos fenômenos.

De uma maneira sucinta a explicação é a seguinte: A força vital como-espírito da substância medicinal, que produz na pessoa sã sintomas similares aos do enfermo, produz neste último uma doença artificial semelhante à sua doença natural. Sendo mais forte, a primeira sobrepuja a segunda, que então não mais é sentida pela força vital do doente, e, portanto, deixa de existir para ela. Resta então a doença artificial; mas esta é de curta duração, e logo desaparece por si mesma, do que resulta a condição saudável para o paciente. Em complemento o parágrafo 34 enfatiza a necessidade de a doença artificial possuir “a maior semelhança possível com a doença natural em tratamento”.

O parágrafo 69 é destinado a explicar, em termos da teoria construtiva da homeopatia, o fato empírico (ver § 23) da inoperância e efeitos negativos do tratamento alopático. Para nós interessa agora mais particularmente o que se lê na nota (a) desse parágrafo:
“Em pessoas vivas, sensações conflitantes ou opostas não são definitivamente neutralizadas como podem neutralizar-se substâncias com propriedades opostas no laboratório de química, onde, por exemplo, ácido sulfúrico e potassa se unem para formar um composto inteiramente diferente, um sal neutro, que não é nem inteiramente alcalino, nem ácido, e que mesmo no fogo não se separa novamente. Conforme dissemos, essas fusões perfeitas que produzem algo novo e estável nunca têm lugar em nosso aparelho sensório, nele dissolvendo impressões dinâmicas opostas. Há apenas uma aparência de neutralização e aniquilação mútua durante um certo tempo; as sensações antagônicas não se cancelam uma à outra permanentemente”.

Vejamos agora a reapresentação feita no parágrafo 148 da teoria em análise:
“A doença natural nunca deve ser tida como uma substância nociva residindo em algum lugar dentro ou fora do homem, mas como algo produzido por um poder hostil como-espírito que, como que por um tipo de infecção, perturba o princípio vital como-espírito em seu controle instintivo de todo o organismo, atormenta-o como um mau espírito, e força-o a produzir no fluxo da vida dores e desordens particulares chamadas doenças (sintomas)”.

“Se se faz o princípio vital parar de sentir a ação desse agente hostil que luta para causar e perpetuar a desordem, i.e., se o médico age no paciente com um agente patogênico artificial (remédio homeopático) que possa desajustar patologicamente o princípio vital do modo mais semelhante possível [do que o faz o agente patogênico natural], e que mesmo na menor das doses é sempre mais enérgico que a doença natural similar, então durante a ação dessa doença artificial semelhante e mais forte, aquele sentimento do agente patogênico natural torna-se perdido para o princípio vital; desse momento em diante, o problema não mais existe para ele, e está aniquilado”.

E, por fim, encontramos no parágrafo 155 este trecho:
“Quando esse remédio homeopático mais apropriado é usado, somente os sintomas medicinais do remédio que correspondem aos sintomas da doença [natural] agem; eles suplantam estes últimos (que são mais fracos) no organismo, i.e., na sensação do princípio vital, e os aniquilam por os excederem”.

Parece evidente que, mesmo em uma avaliação tão sucinta, podemos perceber a natureza de alguns problemas no que se refere à teoria construtiva proposta por Hahnemann para a homeopatia. Mas o que expusemos até aqui já possibilita a visualização dos elementos centrais dessa teoria, que, como já frisamos várias vezes, não entra em conflito com a teoria fenomenológica, embora tenhamos alguma dificuldade em estabelecer com clareza, usando a terminologia lakatosiana, as hipóteses que poderiam compor um sólido “cinturão protetor” do seu “núcleo rígido”.

Como conclusões de caráter filosófico podemos destacar:
1. Trata-se de uma teoria bem articulada, que cobre o conjunto das leis fenomenológicas básicas (Hahnemann desenvolve as explicações construtivas ao mesmo tempo em que apresenta e analisa as leis fenomenológicas).

2. É uma teoria qualitativa. Ademais, se tomarmos por certo o princípio que Hahnemann apresenta na nota “c do parágrafo 269, ou seja, que os medicamentos homeopáticos não agem sobre coisas sem vida, não será possível torná-la quantitativa, já que os instrumentos de medida, não tendo vida, não poderão nunca detectar e medir o elemento como-espírito dos medicamentos e dos organismos. É exatamente sobre esse ponto que se debruça a maior parte dos ataques que a Homeopatia sofre.

3. As leis básicas dessa teoria conflitam de modo claro com as leis e visão do mundo da físico-química clássica. Aliás, muitos pesquisadores da homeopatia parecem tentar associa-la aos princípios da física quântica. Não sabemos ao certo se essa tentativa pode gerar algum tipo de progresso no seu programa de pesquisa. Acreditamos que um maior esforço no sentido de se encontrar uma maior consistência de sua parte construtiva geraria maiores frutos.

4. Muitas das inferências feitas ao longo da elaboração da teoria baseiam-se em comparações e analogias. Evidentemente, isso introduz uma certa vagueza em vários pontos da teoria, particularmente na sua porção construtiva.

Devemos salientar, porém, que o recurso a analogias não é por si só ilegítimo em uma etapa de elaboração de uma teoria científica. O que queremos dizer com isso e, temos certeza, Hahnemann também o corroboraria, é que o seu programa de pesquisa deveria ser assumido como “em construção” e não como “um todo acabado e sólido”, não necessitando, portanto de uma continuidade no seu desenvolvimento. Ao contrário, a maioria das posturas que encontramos nos textos homeopáticos de seus seguidores foram sempre de “não refutabilidade” quase que absoluta, o que não é nada salutar para o avanço da própria teoria homeopática.

5. E, a nosso ver mais fundamental:
Hume já havia descrito uma complicação adicional (que para ele estaria na própria rota do conhecimento humano): ela se da quando a investigação sobre a relação de causa e efeito mostra que o seu conhecimento não é de natureza racional (o efeito não é uma conseqüência lógica da causa), e nem tampouco a experiência pode conferir certeza a seu respeito, ou seja, não podemos justificar empiricamente as inferências causais. Desse modo tudo o que a experiência mostraria é que nos casos passados fenômenos de tais tipos sempre sucederam fenômenos de tal outro. Mas não haveria a garantia de que as ocorrências futuras de fenômenos do primeiro tipo serão seguidas de ocorrências de fenômenos do segundo tipo.

Ora, parece-nos que fica então claro por que existe uma dificuldade extra no caso do conhecimento das proposições sobre coisas e eventos não-observáveis: em tal caso não podemos nem mesmo experimentar a conjunção constante entre fenômenos que nos leve a postular um como a causa do outro. Não podemos, por exemplo, observar o fluxo de elétrons em um fio sendo sempre seguido de certos fenômenos (choque, desvio da agulha de uma bússola colocada em sua proximidade, etc.) para darmos tal fluxo eletrônico como sendo a causa desses fenômenos.

Se no caso das relações causais entre fenômenos temos dificuldades para justificá-las, tendo que nos fiar na simples regularidade passada, quando um dos membros (ou ambos) da relação não é um fenômeno, ou seja, quando não é algo que nos aparece aos sentidos, não dispomos nem mesmo dessa conjunção habitual. A relação terá então um caráter ainda mais hipotético. Seu uso na ciência só se justificará por processos bastante indiretos. Por exemplo, podemos constatar que a hipótese da existência do fluxo de elétrons no fio representa um meio eficiente e simples de explicar tais e tais fenômenos, que essa hipótese é compatível com outras que já havíamos aceitado, que se encontra inserida em uma teoria abrangente e coerente, etc. A nosso ver, é isso o que a maioria dos pesquisadores em homeopatia faz. Será que, como filósofos, estamos sendo muito ácidos?

O que queremos dizer, e isso não invalida ou torna não científica a proposta hahnemaniana da homeopatia, é que a sua porção construtiva apresenta dificuldades de ordem epistemológica; elas não são exclusividade dessa teoria, incidindo igualmente sobre todas as teorias do tipo construtivo, o que naturalmente inclui grande parte de nossas mais importantes e estimadas teorias científicas atuais.

E será sobre uma proposta atual de discussão absolutamente mais abrangente sobre esse assunto o que nos proporemos a fazer no próximo artigo, que tratará da abordagem sistêmica desenvolvida pelo prof. Romeu Carillo Junior.